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Um dia diferente

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 28 de jun. de 2024
  • 2 min de leitura

Quando abri os olhos pela manhã, não poderia supor que meu dia seria tão diferente dos outros.


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Uma cadeira da sala de jantar veio boiando me dar bom dia e o resto dos móveis pairavam no universo hídrico em que a casa tinha se transformado. A cama em que dormi ainda permanecia presa no chão, mas parecia disposta a se juntar aos navegantes caseiros, lençóis e colcha a servir de velas nesse momento fantástico e assustador. Procurei os chinelos para calçar mas, ora, esses já tinham me abandonado durante a madrugada, desertores fugidios na correnteza, que foi levando tudo que não tinha peso e maldade em plena tempestade.


Então enfiei as pernas na água marrom e caminhei, protestando aos céus trovejantes, em direção à cozinha, onde fui testemunhar o prejuízo geral, iniciando pela geladeira náufraga, ilhada entre os pesados armários que resistiam bravamente no meio da água barrenta e fétida. Fogão, mesa, botijão, pia, todos parecendo sobreviventes do caos, sujos e manchados de vergonha por estarem tão desprovidos de alma e encanto na sua humilde serventia. Não há como culpá-los - e nem se tratava de culpado o que eu procurava nesse momento. Procurava uma razão, um porquê, um como, um sentido que fizesse tudo isso rehabitar um lugar na lógica dos fatos.


Não encontraria nada na cozinha que assumisse essa posição esclarecedora, então me dirigi à sala. Ou ao que antes tinha a função de uma sala antes de se transformar num lago. Poderia-se utilizar o termo “plúmbeo” nessa situação, uma palavra que sempre quis alojar numa frase bonita, mas ela agora se transformara numa qualidade estética onipresente em todas as cores da manhã, dos objetos, dos animais, dos humanos e dos sentimentos daquele momento.


Plúmbea se transformara numa qualidade universal presente na cor dos desamores, do descarinho, da desesperança, do espírito infringente da desassistência e da desprovidência, geradora de novos significantes e significados para quem já tinha pouco e esse pouco lhe foi retirado numa noite de chuva teimosa e insensível.


Assim começou um dia diferente de todos os outros.


Texto elaborado como exercício nº 1 para o curso "A Arte da Crônica", de Martha Medeiros

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