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Bom dia, sol (III)

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 14 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura

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Na juventude, passar as noites em claro não era uma provação tão cansativa. Naquela época, os anos de fogo da vida ainda ferviam intensamente nas minhas artérias. “É...”, pensei enquanto subia no ônibus, “… saudades desses tempos fogosos”. Agarro o balaústre do corredor e reviro os olhos de um canto ao outro do coletivo, em busca dos assentos para idosos. Nenhum vazio, mais uma jornada com lotação esgotada. Tenho de me conformar com a viagem em pé até o ponto de São Virgílio, quando a metade do pessoal desce na parada da fábrica.


Lá fora, o lixo da noite se revira num vento sibilante, impregnado de lamentos fugidos de algum lugar sinistro que só sei que existe, mas não sei onde. Imagens do passado, atrevidas, arrogantes, inoportunas, continuam chegando. As cadeiras vazias na mesa da sala, a cidade natal, longínqua e inalcançável, os colegas sem nome da antiga escola primária. Registros fantasmas, arrastando consigo pedaços do coração de um velho conformado com a inaptidão ao mundo assombroso da modernidade. “É... cada vez mais os antigos se tornam solitários. E cada vez mais, os solitários se tornam antigos”. Travo nesse looping, achando muito belo esse pensamento, mas sem conseguir encontrar um sentido mais profundo para essas frases torcidas e retorcidas. Acabo esquecendo aonde o pensamento queria chegar antes disso. Ainda em busca de um sentido maior para a vida? Não sei, continuo procurando algo de importante nessas frases enroscadas, que vão e vêm sem anunciar seus propósitos.


O ônibus freia bruscamente: é Valdomiro, que novamente dormiu mais do que o permitido e chegou na parada correndo, sem lanche como a falta da bolsa térmica denuncia. Conseguiu acenar de longe e teve sorte, muita sorte, de ser avistado pelo motorista naquela rua escura. ”Um dia não vai ter tanta sorte!”, penso eu, quase maldosamente, num julgamento um pouco perverso sobre o pobre porteiro do edifício vizinho à empresa onde trabalho. Mentalmente travo ali, em pé, agarrado na barra de alumínio, uma batalha entre o que pode ser a justiça dos fatos e uma certa crueldade com o parceiro de turno. “Eu não era assim! Estarei me tornando alguém oco de sentimentos?”. Daí, evidentemente, escolho ser benevolente no autojulgamento. “É a idade, é a falta de traquejo, a obsolescência. Nossa, nem lembrava que dormia esse termo no meu vocabulário. É... Às vezes, esqueço que sou tão velho”.


Ter passado pelo quarteirão dos sentimentos me faz lembrar de Isaura e Fátima e seus sorrisos encantadoramente ingênuos. Por que será que só lembramos dos bons momentos quando perdemos quem amamos? Não consigo recordar de nenhuma desavença, nenhum instante em que elas tenham me decepcionado ou irritado. Mas recordo facilmente de empurrar o balanço e Fátima me pagar com esse mesmo sorriso encantador — uma moeda que sempre achei muito mais valorosa do que a força do meu braço a lhe fazer voar pelos ares repletos de outras risadas na pracinha. Sempre, sempre, sempre recebia o brinde máximo, que me iluminava o espírito para o resto do dia, na forma daquelas gargalhadas infantis, a cabeça pendulando para frente e para trás, num movimento de impulsão alegre, jovial, radiante. Hoje, mesmo muitos anos depois da partida delas, essas risadas continuam me comovendo com a sua graça celestial. São como um presente, do qual eu não tinha tanta ideia do valor terreno até o perder naquele cruel acidente que me fez desmoronar a razão e me estatelou no vício da bebida por anos. Penei vários infernos em cada estação antes de, finalmente, recolocar os pés no chão e renascer num emprego de vigia noturno. Estranho como eu não consigo ter lembranças tantas de Isaura, morta no mesmo evento macabro. Por quê? Por quê?


Por…


Quê?


O ônibus engole mais um passageiro na parada seguinte e me sequestra do território árido dessas lembranças mais dolorosas que gentis — porque é sempre do fim que lembramos com maior vigor —, relincha contrariado e retoma seu movimento. É preciso apressar o passo do veículo, o horário impiedoso o exige do motorista. Percebo que ainda há algumas descidas e subidas até eu poder me sentar em algum dos bancos esvaziados pelos operários da noite. São quatro paradas ainda a vencer até chegar em São Virgílio. Mas a noite caindo como um véu na cidade tem seus próprios planos antes de cruzarmos mais um bairro.


Entram dois mascarados no coletivo. O adulto rende o motorista e o outro, um reles fedelho, avança pelo corredor angariando celulares, carteiras, bolsas e os pertences de uma gente miserável, sonolenta, indefesa e despertencida. Ele vem direto em minha direção. Não há outro caminho possível no ônibus. O menino mascarado agora está na minha frente, visivelmente eletrificado na sua ansiedade, olhos marejados de audácia e violência, abanando um revólver e exigindo a minha parte de sacrifício. Digo-lhe: “Não há nada aqui para você.” E não que eu esteja mentindo, minha situação é realmente de quase completa indigência. Não tenho mesmo nada para entregar, nem um celular. Nem a aliança de Isaura tive como salvar do penhor.


Num intervalo entre dois piscares de olhos, cheio de reentrâncias afetivas, relembro toda a minha trajetória de tragédia e empobrecimento até soçobrarem todos os recursos materiais e imateriais e entrar neste ônibus. Mas sou rispidamente interrompido nesse lapso de tempo de autocomiseração. Ele abana ainda mais freneticamente a arma, quase pula de indignação. “Não tenho dinheiro, nem celular, nem carteira. Só o cartão do ônibus”.


O tiro ecoa nas paredes metálicas do ônibus.


Os passageiros se abaixam instintivamente.


O motorista agarra o bandido ao seu lado e os dois se contorcem num pugilato sem técnica, sem pujança, sem honra e sem fim previsível. Escuta-se apenas a batalha surda e desesperada pela vida. Grunhidos, pés arrastando, ruídos macios de roupas ásperas se esfregando nos vidros embaçados de pavor. Até que o menino mascarado, de pé ao meu lado, ainda confuso com a minha resistência, desvia os olhos do meu corpo estendido no chão do veículo. Vira-se para o palco da luta e aponta a arma para os dois homens agarrados e se contorcendo na escada de entrada, na frente do ônibus.


Outro estampido percorre o corredor.


Ouve-se um “Ahhhh”, grunhido abafado, amordaçado pelo desalento.


E seu comparsa cai desfalecido. Um homem, ajoelhado atrás de um banco, levanta-se e agarra a mão do fedelho, rouba-lhe a arma e tenta disparar nele. Mas o piá é ágil, tem a juventude ao seu favor, e pula pela janela aberta. Alguém liga para a polícia. O tempo passa devagar, o silêncio do drama vai sendo progressivamente anulado por vozes, sirenes, carros parando. Escuto também as gargalhadas de Fátima ao longe, mas elas vão sumindo, sumindo.


A multidão conversa freneticamente ao lado do veículo encostado perto da praça Bonavides. Comentários amedrontados, sussurros gritados e gritos sussurrados, descrições unilaterais e testemunhos entrecruzados acompanham os gemidos da noite indo embora. No ônibus, os bancos iluminados pelas luzes da viatura são as únicas testemunhas do desamparo que a gente sente quando a vida vai escorrendo pela ferida aberta na embalagem da alma. Não imagino solidão maior que a ausência de alguém que nos dê a mão nessa hora, embora uma existência solitária talvez percorra o mesmo passadiço, só que mais lentamente. “É... cada vez mais os antigos se tornam solitários…” Os tentáculos do astro-rei, curiosos, se aproximam, vindos pelas frestas do ônibus para me dar bom dia. Respondo com o que sobrou das últimas forças, porque é de um brinde o que mais preciso agora.


“Bom dia, sol!”


Silêncio e escuridão. É o que resta, no fim.



4º exercício para o curso “A Arte da Crônica” de Martha Medeiros: “Bom dia, sol!” — ponto de vista de um notívago.

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