Bom dia, sol! (I)
- rpegorini
- 30 de jun. de 2024
- 3 min de leitura

Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
Se Deus quiser quando eu voltar
Do mar
um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E a Deus do céu vamos agradecer
[ Suíte dos Pescadores | Dorival Caymmi ]
Rosinha finalmente desvia os olhos do encontro com o mar. É a quarta noite de vigília e Raimundo não apareceu novamente. Com os pensamentos presos num redemoinho infinito de saudade e martírio, toma instintivamente o caminho das pedras pretas para não sujar os pés descalços na areia, como sempre fez para não irritar os filhos. Sabe que não escapará de lidar com o choro dos quatro meninos quando tiver que, mais uma vez, anunciar o insucesso da espera pelo paínho.
Rosinha também já naufragou a ilusão de escapar de um biscate na venda de Seu Nicolau. Lembra sempre com nojo do interesse peguento do velho batoré - coisa ruim que não vale o que o gato enterra - pelo seus quartos, já no outono da vida, mas que ainda conservam uma dureza e uma quentura que só o seu Mundinho foi autorizado a provar desde que a fez de menina-moça em mulher por inteiro. Engoliu uma lágrima salgada da alma, com sabor de mar dos navegantes, e imaginou que, mesmo aperreada – arriégua dos inferno! –, tem ainda força na mente pra ir dando migué e desembestar os arrochos do velho estribado, dono do único comércio da vila.
- Danou-se! Não posso ficar de espinhela caída! As prateleira tão esvaziano sem os peixe que Mundinho trazia.
Dá-se conta que começa a pensar em Raimundo como coisa do passado, como alguém sem mais nenhuma valia na sua vida. É da vida e da soleira do tempo a luta pela sobrevivência. E agora ela é o “homem da casa”, não pode ser dar ao luxo de ficar bestando enquanto os pequenos passam fome, quem mandou Rosinha ser mãe quando já estava ficando passada? Mãe é pra isso mesmo: pra se sacrificar pelos meninos, que estão ainda pixototinhos e com as pregas mal arrumadas.
Enquanto ia pela trilha, ouvia os próprios pensamentos como um eco vindo das águas, um leriado carinhoso consigo mesma, que agora precisa desprezar as lágrimas e planejar um futuro sem Mundinho, desaparecido nas longínquas ventas do mar. O ceu já começa a ficar vermelho de novo, o vento bate forte depois da trilha. É um novo dia se anunciando, uma nova peleia que o destino exige de Rosinha, uma nova chance para essa mulher arretada e caceteira salientar sua coragem. Eis aí um direito de toda mãe no mundo: zoar das trapalhadas do destino emburrado, filho imburacado de uma égua, que não foi devidamente educado pra prestar atenção no sofrimento alheio.
Ela chega no barraco onde os filhos ainda estão dormindo, Puxa o ar todo que arrodeia os oitão de sua casa e empina o peito de maínha, como se fosse dar o primeiro mamá da manhã, e se prepara para abrir a porta. Antes ela olha pra trás e lembra de Raimundo, o seu amado Mundinho, o mundo que era só dela, como se o procurasse para recompor as forças, um último pensamento de amor ao homem de sua vida. Mas Mundinho não está lá. Só o astro-rei, a quem cumprimenta muito raçuda.
- Bom dia, sol!
E entra.
2º exercicio para o curso "A Arte da Crônica"., de Martha Medeiros. "Bom dia, Sol!" - ponto de vista de um pescador. Aqui me dei o direito de transgredir um pouco a proposta do exercício e escrevi a crônica pelo ponto de vista da mulher do pescador.
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