Saiu para comprar um peru e voltou com uma estátua
- rpegorini
- 22 de dez. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 1 de fev.

Era uma manhã de véspera de Natal, e Haroldo acordou ouvindo as propagandas na TV com trilha de sininhos e muitos ho-ho-ho em cada comercial. O cheirinho dos quitutes sendo preparados na cozinha inundou suas narinas e fez Haroldo erguer-se num pulo, salivando como um cachorro famélico. Dona Veridiana percebeu os movimentos vindos do quarto e apareceu na porta, com as duas mãos na cintura e um sorriso emoldurando a arcada linda, branquinha e reluzente.
- Haroldo, bom dia, meu amor... já providenciei as bebidas, a farofa, o cuscuz, o panetone... agora só falta você buscar o peru no mercado!
Deu dois passos em direção à cozinha e subitamente um pensamento travou sua caminhada. Voltou e lascou a complementação da ordem:
- Nada de inventar moda, Haroldo. Peru. Grande, bonito e temperado.
Ele assentiu com um suspiro, vestiu a roupa tranquilamente, pensando em cada possibilidade de encontro com algum amigo para um cafezinho, colocou o chapéu e saiu para o centro da cidade. O mercado municipal estava lotado. A ansiedade mundana e popular espremia os corações angustiados entre os corredores, disputando freneticamente desde frutas exóticas até enfeites de última hora. Haroldo se deslocava no corredor do mercado empurrando sutilmente a massa de gente à sua frente, sufocado pelos suores da agonia popular e esmagado pela energia corpulenta da multidão. Caminhava com passadas decididas em direção ao setor de carnes quando, na esquina do corredor leste com a alameda norte, algo sugou sua atenção. Era um pequeno antiquário, com uma vitrine repleta de objetos curiosos.
No meio do caos natalino, a tendinha vazia no mercado lotado parecia um oásis, um instante quase mágico. Um brilho dourado refletido pela vitrine fisgou seu olhar. Era uma estátua. Mas não era qualquer estátua, era o objeto de desejo acumulado há anos, uma querência adormecida no coração desde a infância, a imagem que o atormentava em seus sonhos pelo menos uma vez por semana. Ali estava ela! A estátua dourada dos sonhos! A santa coberta por um véu dourado, estranhamente elegante e naturalmente bizarra ao mesmo tempo. Onde já se viu um véu dourado? Haroldo não sabia dizer por que, mas sentiu que precisava imediatamente daquela estátua, antes que mais alguém a levasse e roubasse seu sonho.
Empurrou, um pouco amedrontado mas muito emocionado, a porta do antiquário, que rangeu como se não fosse movimentada havia anos. Lá dentro, o ambiente caoticamente organizado tinha um cheiro nostálgico de madeira antiga e mistério novo. Atrás do balcão, um homem oriental, magro, de idade indeterminada, o saudou com um sorriso.
- Veio por ela, não foi?
Apontando para a estátua antes mesmo que Haroldo pudesse abrir a boca. Confuso, Haroldo gaguejou.
- Bem, eu… eu estava indo comprar um peru, mas… não consegui resistir...
O vendedor sorriu ainda mais maliciosamente, como se ouvisse algo já esperado.
- Essa peça é única. Dizem que traz sorte e prosperidade para quem a possui.
Haroldo franziu a testa, agora sim, desconfiado, mas não conseguia tirar os olhos da estátua. Sem entender muito bem o porquê de estar evoluindo nessa negociação, perguntou o preço. Era caro. Bem mais caro que o peru.
Algo dentro dele, contudo, parecia implorar que ele precisava levar aquela estátua. Tinha alguma coisa nela que arrebatava suas defesas lógicas, dissolvia a sua resistência emocional e enterrava a responsabilidade familiar. Fez um rápido cálculo mental, lembrando-se do dinheiro reservado para o jantar, e, numa tentativa de driblar o arrependimento, entregou as notas destinadas ao peru e mais tudo o que tinha na carteira ao vendedor. Quando saiu do antiquário com a estátua embrulhada em papel pardo, uma mistura de euforia e culpa instalou-se no seu espírito.
- O que foi que eu fiz?
Compungido e envergonhado, deu meia volta para desfazer o negócio. Mas voltou à esquina do corredor leste com a alameda norte e não havia mais antiquário lá. Deu a volta no bloco, esquadrinhou todos os outros corredores cada vez mais desesperado. Nada. O antiquário sumiu!
Voltou arrasado, cabeça prostrada, coração esmagado pela culpa, ignorando no caminho os amigos no café da padaria e os zeladores dos edifícios, seus parceiros de jogo e conversa fiada. Chegando em casa, encontrou a esposa na cozinha, cheia de expectativas. Ela olhou para o pacote em suas mãos e arqueou as sobrancelhas.
- Haroldo, o que é isso?
Ele hesitou, pensando em algo convincente, mas acabou entregando a verdade.
- Bem… eu ia comprar o peru, mas vi essa estátua e… não consegui resistir.
Dona Veridiana ficou em silêncio por um momento, o olhar oscilando entre a raiva e a incredulidade. Então, soltou uma gargalhada.
- Haroldo, você é um caso perdido! Agora nós não temos peru, mas pelo menos temos uma… coisa dourada?
E saiu rindo-se com as irmãs, já acostumada com as presepadas de Haroldo. Naquela noite, o jantar de Natal foi improvisado com o que havia na despensa. Apesar da ausência do peru, a família riu e brincou ao redor da mesa, e a estátua se tornou o centro das piadas. Alguns meses depois, Haroldo recebeu uma ligação inesperada de um colecionador, oferecendo uma quantia exorbitante pela peça. Ele nunca soube como o homem descobriu que a possuía. Mas dizem que esse colecionador sonhava constantemente com um peru de Natal e no recibo do peru estava o telefone de Haroldo.
Comentários