top of page

A sombra

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 19 de ago.
  • 6 min de leitura

Roger sentia-se importunado por algo que não compreendia. Não percebia um perseguidor de carne e osso, mas algo etéreo, uma presença inquietante que o acossava, incógnita, nas vielas à luz do entardecer, no quarto escuro durante a madrugada, no reflexo distorcido das vitrines empoeiradas. Não era medo do escuro, nem dos vultos que dançam atrás de portas entreabertas. Era um desconforto crescente ao pressentir uma presença indefinida, muito próxima, dia após dia mais estranha e ameaçadora.

Num belo dia primaveril, acordado pela claridade nas paredes e pelo barulho de um caminhão rabugento coletando sacos de lixo empilhados na rua, Roger senta na cama ainda sonolento, calça os chinelos e vai até o banheiro urinar. Levanta a tampa do vaso e arregala os olhos para não errar o jato. É quando percebe a falta de alguma coisa, uma lacuna na rotina que não sabe muito bem ainda o que pode ser. Melhor passar uma água no rosto, dar uma chacoalhada na preguiça. Abre a torneira da pia, molha bem as mãos, faz conchinha e enche com o líquido despertador. Lava a face, aperta bem o canto dos olhos, passa mais uma água para remover as remelas, esfrega de novo as mãos no rosto e pega a toalha pendurada na parede. Tudo isso ele faz praticamente de forma automática, de olhos fechados, começando a organizar mentalmente a ordem das providências do dia.

Trabalha numa pequena livraria no centro, infestada pelo cheiro de papel velho, cemitério de histórias abandonadas, onde o silêncio havia se tornado sua principal companhia. Aquele particular pedaço do mundo transformou-se, por desígnios próprios, no domínio imperial de Roger, seu habitat natural e sua razão de existência, rodeado pelos heróis literários de todos os tempos e pelos enredos compostos há séculos e séculos antes de herdar a livraria da mãe. Era para lá que ele agora dirigia seus pensamentos organizacionais: já estava na hora de abrir as portas do seu negócio e, por razões puramente egoístas, continuar aquele conto de Hawthorne, “O Véu Negro do Ministro”. Ah, sim, há os clientes, raros, mas que, não se sabe como, são capazes de adivinhar os meandros das linhas dos livros e chegam sempre quando a leitura começa a ficar mais envolvente. Cacos do ofício, é preciso encher a despensa e ter algo na geladeira, por isso vale a pena marcar a página e continuar a leitura depois. A mente de Roger, portanto, já havia chegado à livraria e antecipava os atendimentos que faria durante o dia, mas é preciso levar o corpo também. Caminha na rua, pensando nas estranhezas do pastor Hooper, passadas curtas acompanhando o ritmo dos cantos dos pássaros, trepados nos fios dos postes e nas pequenas e esparsas árvores nos canteiros da calçada, quando se dá conta, finalmente, da ausência.

Roger agora olha com atenção máxima as pessoas que passam.  Atenta que atrás delas, sempre na direção contrária da luz e vergadas pelo ângulo do sol, acompanham-nas, em maior intensidade ou menor contraste, as sombras. Ele perscruta as sombras dos pedestres passantes, dos postes, dos carros estacionados, das árvores, dos cachorrinhos que passeiam ao lado de seus tutores. Sombras movimentam-se conforme a inquietação de seus donos ou permanecem letárgicas, encostadas nos muros, entortadas pela mudança de ângulo das esquinas. Mas estão todas lá. Negras como o véu do pastor. Fortes quando o sol aparece, fracas quando as nuvens passam. Tontas, irrequietas, alongadas ou esmagadas, aprisionadas aos seus naturais proprietários. Todas presentes e atuantes. Menos a sua própria sombra. Roger não consegue encontrar, em lugar nenhum, em nenhum ângulo ou nenhuma direção, a sombra que deveria acompanhar seu corpo acorrentada pelos pés. 

Parou diante da vitrine da livraria, onde gostava de observar, além das capas dos lançamentos e dos best-sellers, o seu reflexo, como quem se certifica de que ainda existe no mundo real e conhecido, onde as coisas comportam-se de maneira lógica e racional. Mas, nesse dia, o reflexo estava incompleto: ali estava o homem, com o casaco puído e o mesmo olhar cansado das décadas de solidão entre livros, mas não havia sombra que o acompanhasse no chão da calçada. Franziu mais uma vez o cenho, “agora estou acordado mesmo”, virou-se novamente para o chão, onde a luz do poste deveria desenhar a sua silhueta, mas o asfalto permanecia nu. Agachou-se, massageando os olhos, certo de que era apenas sonolência ou efeito do nevoeiro. Tentou rir de si mesmo, mas o som saiu rouco, seco, como se a fé na ciência tivesse fugido junto com a sombra.

O resto do dia foi um tormento. Na livraria, as lâmpadas lançavam as sombras tortas dos móveis e das estantes, mas de Roger, não importa onde se posicionasse, não se projetava nenhuma. Um frio viscoso percorria a espinha de cima para baixo, do meio para as pontas. Sentia o peso do olhar dos livros antigos e as lombadas cobertas de poeira pareciam traiçoeiras, como se sussurrassem entre si um segredo que ele jamais entenderia. Ao final da tarde, ninguém apareceu mesmo, fechou a loja mais cedo, incapaz de suportar solitariamente o desconforto da condenação. Caminhou de volta para casa, evitando encarar o olhar curioso dos poucos transeuntes, certo de que todos o culpavam pela fuga da sombra. Teria ele, de alguma forma, a magoado tão gravemente?

Jantando na lancheria, tentou distrair-se com o som de xícaras tilintando e conversas abafadas, mas não conseguia tirar da cabeça a ausência da eterna parceria. Seu corpo tinha a falta de algo elementar e sua alma tinha um buraco tremendo a lhe sugar a saúde mental. Sentia-se despido, vulnerável, indefeso, como se todos soubessem e apontassem um dedo imaginário para a sua deformidade, gritando silenciosamente que lhe faltava algo fundamental. À noite, deitado na cama, sentiu a solidão crescer até preencher todas as frestas do quarto. Ligou a luz, depois desligou, procurando a silhueta familiar na parede. Nada. Apenas o vazio. O silêncio tornou-se implacavelmente acusador e Roger percebeu que, junto com a sombra, perdera também o sono e a tranquilidade que lhe era companheira cotidiana. O relógio avançava cada minuto com a precisão de um carrasco.

Nos dias seguintes, a ausência tornou-se insuportável. Começou a notar comportamentos estranhos das pessoas ao seu redor. Donos de lojas fechavam as portas quando ele se aproximava. Crianças apontavam-no na rua e cochichavam, como se vissem nele algo monstruoso. Até os cães latiam, inquietos, fugindo dele como se pressentissem um perigo invisível. Roger buscou explicações. Consultou médicos, que riram da sua preocupação como se fosse um devaneio de uma mente cansada. Procurou padres, que o benzeram e sugeriram dormir com uma cruz ao lado. Visitou um velho alfarrabista, que lhe ofereceu um livro raro sobre criaturas das sombras, escrito em latim, mas as palavras eram indecifráveis, e as ilustrações apenas aumentaram o seu terror. Procurou um físico muito famoso que o correu covardemente do laboratório, incomodado com a incerteza do inexplicável.

A sensação de ser observado intensificou-se. À noite, imaginava ouvir passos no corredor, sussurros vindos do guarda-roupa, o ar ficando gelado ao seu redor. Um dia, cruzando uma esquina antiga, viu algo impossível: uma sombra, independente, deslizando pela parede diante dele, sem dono, sem corpo, como uma mancha de tinta viva. Ela dançou, contorceu-se, imitando os seus movimentos, até desaparecer numa fresta entre os tijolos. Desesperado, Roger passou a evitar espelhos, vitrines, qualquer superfície que pudesse denunciar o incômodo da ausência. Vestia-se com roupas largas, andava cabisbaixo. Mas era inútil: a cada passo, algo parecia segui-lo, mais próximo, mais audível, como um sussurro ao ouvido. Certo dia, acordou coberto de suor e percebeu, com horror, que a ausência da sombra tornara-se uma presença: invisível, mas opressora. Ela não estava presente fisicamente, mas o assediava com obsessão maníaca. Roger nunca mais foi o mesmo. Tornou-se uma figura espectral nas ruas da cidade, evitado por todos, sempre seguido por uma sombra errante, que às vezes se afastava, brincando nas paredes e desaparecendo nos becos. Aos poucos, foi compreendendo que sombras não nos pertencem realmente. São testemunhas silenciosas, prontas para reclamar o que um dia lhes foi tomado

Numa madrugada sufocante e interminável, decidiu enfrentar aquilo que não compreendia. Deixou que a paranoia o levasse até ao subsolo de um edifício, onde as sombras eram densas e a luz parecia nunca ter existido. Ali, entre paredes rachadas e odores de umidade e podridão, encontrou um espelho antigo, coberto de teias. Aproximou-se, sentindo o coração martelar contra o peito, e fitou o próprio reflexo. Não havia sombra, mas por trás da sua imagem, entre as sombras reais, vislumbrou olhos brilhando num preto impossível. Foram segundos eternos. Os olhos tornaram-se mais claros, e uma forma indistinta começou a emergir do escuro. Roger sentiu o seu corpo preso, incapaz de se mover. Sentiu-se diferente, vazio, como se tivesse deixado para trás algo essencial. O espelho agora estava rachado, refletindo apenas fragmentos da sua figura. Tentou gritar, mas a voz não saiu. Ao olhar para o chão, viu que a sombra regressara, mas não obedecia aos seus movimentos. Dançava sozinha, distorcida, como uma entidade independente.

No dia seguinte, o zelador do edifício encontrou o corpo gelado de Roger, caído no chão do estacionamento do subsolo. A perícia nada encontrou que justificasse aquela morte, então definiram preguiçosamente como mal súbito. Vizinhos e clientes que o conheciam depuseram que nunca o tinham visto tão magro e pálido, crianças juntaram os livros caídos ao lado de seu corpo. Num deles, o Volume I de Twice Told Tales, marcava a página 45. Outros ocupantes curiosos do edifício que foram acompanhar os trabalhos da polícia e dos técnicos do Instituto Médico Legal, relataram ter visto alguém se mexendo entre os carros. Parecia usar roupas escuras e se deslocava em absoluto silêncio. Mas a polícia nunca levou a sério esses depoimentos pois não encontrou nada nada no local a não ser sombras.

 

Posts recentes

Ver tudo

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page