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Baderna

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 24 de jul.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 12 de ago.

Todo ser humano nasce “de fábrica” com um Deus instalado dentro de si. Alguns trazem de nascença um vigor predominantemente solar que ilumina e aquece as pessoas com as quais estejam em contato. Outros padecem anos lutando contra alguma antipática predisposição ancorada incógnita no temperamento e por isso perdem um tempo considerável recuperando afetos perdidos nas sombras da vida. Há quem melhor alimente uma essência que percebe de forma mais poderosa a presença da beleza na natureza e, por necessidade intrínseca, a reproduz, a modifica ou a elabora obsessivamente em seus legados pela Terra. São energias que consomem a sua própria existência rastreando vias pelas quais consigam emergir do íntimo pessoal de cada um para a realidade mundana, com a obstinação de cumprir a missão para a qual foram geradas. Toda pessoa que conhecemos tem em si embutida alguma preponderância no sistema vetorial espiritual que manipula as linhas de seu próprio destino. Sim, é nisso que creio.

Marietta nasceu em 1828 na cidade de Castel San Giovanni, uma cidade portuária militar a meio caminho entre Florença e Gênova, com o Deus do Movimento embalando seus sonhos e seus passos pela Terra. Na escola, completamente irrequieta por natureza, foi sentenciada pelos deuses da Inveja a uma vida de fracassos nas letras e nas ciências, abandonada pela seriedade acadêmica e estigmatizada como endiabrada pelas nobili donne do começo do século XIX. Logo foi afastada do convívio das scolarettes, que, a meu ver, não mereciam conviver com criatura tão abençoada.

Temos certamente um destino irrefreável a cumprir e, para isso, a sorte do Deus de Marietta arranjou que ela viesse a este mundo pela família de um médico-cirurgião. E este, ora vejam, filho de amantes do ar em movimento, tinha dentro de si o Deus da Música. Este educou Antonio a reconhecer o verdadeiro destino de sua filha, maldosamente profetizado pela sociedade conservadora italiana da época como inútil e nocivo. Antonio era médico sim, mas nas horas vadias da profissão, as melhores horas de sua vida, permitia que sua interna divindade viesse a público soprada de dentro de uma clarineta. Logo o estudo apaixonado pela música o levou ao piano, executando peças de Bach e modinhas que ele mesmo compunha. Melhor dizendo, modinhas que a divindade criava e pouco a pouco entregava já domadas ao desembaraço de Antonio, expressas em símbolos flutuando sobre pentagramas comprados numa livraria antiga da Via Canova.

Foi num desses momentos extraordinários, nos quais o ânimo desarmado sobrepuja os artifícios da profissão formal, que Antonio compreendeu melhor a presença incontestável do Deus de Marietta. Convencido de que há caminhos pessoais que obedecem ao entrecruzar ancestral dos planetas, a colocou imediatamente numa escola de dança. E assim corrigiu o falso destino prolatado na sentença lavrada pelo preconceito, pois a Antonio cabia cumprir os desígnios do seu tempo e da sua humanidade. E não perdeu a oportunidade, outorgou a sua filha uma chance de demonstrar ao mundo a sua importância e sua infinita capacidade de amar o movimento e as pessoas transbordantes de cinesias.

Com menos de 16 anos, Marietta já começava a coreografar suas inquietações sobre os palcos italianos e não teria completado ainda duas décadas de vida quando Paris a viu sair das coxias indiferentes do Théâtre de la Porte Saint-Marti para uma calorosa aclamação pública, ou, como alguém diria na época: direto para o estrelato. Dançou sobre a alegria, sobre a tristeza, sobre o espanto e sobre a teimosia. E o fez sempre com tanto amor e entrega que o público se apaixonou pela luminosidade e pela gentileza que Marietta deixava atrás de cada Sauté, de cada Pirouette e de cada Grand Jeté desferidos em cima do tablado e cujos rastros permaneciam na memória de cada espectador por semanas a fio, como um encantamento da alma que antídoto nenhum era capaz de diluir.

Aos vinte e seis anos, os ventos da providência empurraram as velas do navio de Marietta para um novo continente, atravessando o oceano e abençoando o império tropical com a presença das artes buliçosas da jovem ragazza. Ei-la agora performando seu natural alvoroço entre comadres brasileiras, lampeiras, frenéticas, turbulentas e desavisadas da potência muscular da novata italiana e seu socialismo utópico. Esmagadas pelo assombro, nunca haveriam de reconhecer passos franceses tão pouco protocolares e estupefações cênicas tão heterodoxas. Marietta trouxe para o repertório clássico do ballet os passos nascidos no improviso da alma, forjados no fascínio da confusão e turbulentos como a entidade que projetava o corpo dela em qualquer palco, seja na Europa ou seja no Brasil.

No último capítulo que nos interessa falar sobre a divindade de Marietta seria um verdadeiro crime não mencionar que Marietta saiu às ruas do Rio de Janeiro e nelas encontrou não apenas uma pessoa, não apenas um corpo de baile, mas encontrou todo um povo compartilhando o mesmo Deus do movimento. Marietta não sabia exatamente quem eram esses dançantes, mas seu ente interno compreendeu imediatamente que essas pessoas estavam amalgamadas com os mesmo processos energéticos da sua estrutura. Eram elaborados com a mesma magia, enfeitiçados pelo mesmo encantamento, contaminados pelo mesmo parasita. Marietta dançou com eles na rua, nas praças, nos celeiros, nos prédios e nos teatros, no ontem e no amanhã, no interno e no externo, no consciente e no inconsciente. Marietta dançou porque é para isso que ela nasceu e foi por isso que ela teve que atravessar o Atlântico e aqui encontrar o outro pedaço da sua existência. Suas danças ultrapassaram todos os limites do pequeno alcance do conhecimento dos não-dançantes da época. Amaram, odiaram, rugiram, berraram, sofreram e se encantaram. Mas ninguém ficou indiferente aos movimentos que o corpo de Marietta desenhava no espaço. Tanto que seu nome timbrou um conceito que poucos seriam capazes de compreender verdadeiramente naquele instante e naquele patamar de entendimento, talvez isso se aplique até mesmo para a maioria das pessoas da atualidade. O Rio de Janeiro nunca mais foi o mesmo depois de Marietta Baderna.


 

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