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O Tempo de Cada Um e o Tempo de Todos Nós

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 29 de set. de 2024
  • 4 min de leitura

Morreu com o quarto cheio de borboletas porque fazia delas um resumo da vida: linda, frágil e breve.


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Encontrei-o caminhando, quase correndo como sempre, no parque perto do rio. Absorto, cara fechada e olhando para algum ponto muito distante na orla, sabe-se lá que Preocupações o Tempo leva entre as duas orelhas enquanto voa pela trilha de lajotas. Não me percebeu, tive que gritar para chamar sua atenção, mas logo me reconheceu e iluminou a face com a minha companhia. “Vem, corre! Estou atrasado!”

Apressei a passada para alcançar a ansiedade dele e pensei comigo: “Quem disse que a pressa é inimiga da perfeição não conhecia as manias do Tempo”. Talvez ainda pensassem nos termos do século XX, quando muito se tentava atingir Perfeições que hoje já não fazem sentido. Nem há mais tantos Sentidos que valham a pena aperfeiçoar, sendo a alma humana já triste de tantos fracassos e tentativas de se santificar. O Tempo sabe disso, sabe de Sensos que ainda não encarnaram, mas que nada mais serão do que reincidências dos Sentimentos de séculos passados. É que o Tempo pressente os caprichos de cada época e deles saboreia os anseios, desígnios, propósitos e indícios. Os homens pensam estar descobrindo tudo pela primeira vez, mas o Tempo, ora, o Tempo já testemunhou tudo isso e compreende a impossibilidade de se inventar novos Sentimentos. Todos eles já operavam desde que o Tempo é Tempo e desde antes de a pré-humanidade tornar-se humana, desprendida de um ramo dos antropoides maravilhados em volta do fogo. Você vê isso nos cachorros e nos gatos, não vê?

É muita presunção da nossa espécie assim se considerar como o centro do universo e nele se achar proprietário das matrículas dos seres e das galáxias, um inchaço de vaidade a contaminar tudo que encontrou já presente na Realidade e nos Sonhos. Sonhos? Perguntei ao Tempo: “e por que você não comanda o mundo dos Sonhos?” O Tempo pigarreou, rosnou umas duas ou três tossidas e de lá de dentro dos pulmões veio a confissão constrangida: “Os Sonhos são o único território da Realidade para o qual não tenho passaporte válido”. Então entendi que é nos Sonhos que nos refugiamos do implacável transcorrer das Horas e dos Minutos, os afilhados do Tempo que a humanidade adotou para registrar de alguma forma o envelhecimento da Existência. Você já reparou que o Tempo dos Sonhos não corresponde ao Tempo da vigília? É que lá o Tempo de Todos Nós não entra. Bingo! Quer frear a passagem do Tempo? Durma e não acorde mais!

Mas isso nos leva à companhia de outra entidade amedrontadora: a Morte. Só ela sabota as tramoias do Tempo, considerando que Tempo de Cada Um tem um Início e um Fim, diferentemente do Tempo que encontrei no parque. Este carrega uma mochila com as ferramentas da Razão e da Consciência porque é preciso ter métricas cartesianas para a Emoção. E, também, o Tempo tem remédio para Tudo. Tudo o Tempo cura. Espiei por baixo da mochila e me certifiquei de que ali estavam as suas asas, pois o Tempo... ora...  O Tempo voa. No entanto, por alguma providência que a mente humana não abarca, agora ele estava andando ao meu lado, quieto e feliz de não estar sozinho. A Morte não. A Morte é uma entidade solitária, tanto quanto o Nascimento, e, por isso, menos impactada pela angústia dos Vivos, que se tornam automaticamente Defuntos com a sua presença.

O Tempo é o melhor remédio quando se espera a Dor morrer aos pouquinhos no peito dos Vivos e a aflição dos Sentimentos dissolver sozinha depois de uma pancada no Espírito. Assim continuamos nosso papo, indiferentes ao espanto que as vestes puídas e a longa barba branca do Tempo causavam nos transeuntes do parque. Aproveitei para ser um pouco egoísta e, num lampejo de Coragem que nem Eu sabia que tinha, perguntei ao Tempo o que todo Mortal tem medo de saber: “Quanto Tempo me resta, Mestre?”. Vontade oportunista de conhecer, antes dos outros, o momento dessa visita fulminante. Houvesse uma forma de medir a esperteza do Tempo de Todos Nós, diria que milênios se passaram antes dele pigarrear novamente e trazer lá do hemisfério norte da sua sabedoria a resposta que ninguém quer ouvir: “Teu Tempo está esgotado. Já vem vindo atrás de mim a Morte para te visitar”. Entendi, resignadamente, que o Tempo de Cada Um nasce emplacado nas batidas do Coração e cada ser já leva na carcaça o número certo de palpitações de toda sua Existência e foi isso que o Tempo de Todos Nós leu na minha mente. Completou: “Será a trilha que cada um escolhe que marcará em cada batida do Coração um significado mais ou menos precioso. Agora é Tarde, já fizeste tuas Escolhas”.

O Tempo se despediu amavelmente na esquina do Shopping para seguir em direção ao centro e me deixou lá, esperando a Morte e pensando nas Escolhas que fiz na vida. A danada chegou, encostou o ônibus na calçada e me transportou até a Parada 65, onde descemos. Dali, carregou-me no colo, já sonolento, para o Quarto das Borboletas. Dormir, dormir, talvez sonhar. Agora, o sono será Eterno e lá dentro não se ouvirá falar em dias ou noites, ou meses, ou anos. Lá o Tempo não passa.

 

 

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