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O Homem que virou fumaça

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 15 de set. de 2024
  • 3 min de leitura


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Procuraram Antônio por três dias antes de abandonar a salvação dos restos mortais, pois já tinham desistido de salvar sua alma há muito tempo. Foi numa noite de lua cheia que ele bateu as cinzas do cigarro no copo de cerveja vazio, levantou-se da mesa na frente do bar, percorreu a pracinha em direção à igreja e sumiu na fumaça laranja que teimava em vadiar nos céus da cidade desde os últimos três outonos. Num primeiro momento, Zé Daniel e Virgulinha olharam distraídos a dissipação daquele homem enorme no ar denso e não se deram conta de que ele não chegou ao canteiro da estátua do ex-prefeito Percival. Rosinha estava fechando a loja naquela hora e também estranhou a misteriosa enganação que os sentidos lhe aplicavam. Logo ao direcionar os grandes olhos verdes para a praça, percebeu a fumaça envolvendo Antônio e dissolvendo rapidamente um metro e noventa e seis centímetros de carne, osso, pele e insanidade em estado bruto. Num instante. Ela nem tinha terminado de piscar, enquanto guardava as chaves da loja, e o homem já tinha sumido.

Ninguém entendeu o que houve. Chamaram a polícia, que mediu pacientemente as distâncias, varreu a pracinha em busca de indícios, interrogou o dono do bar e os bêbados e ainda interpelou Rosinha e quem quer que estivesse por perto naquele horário vampiresco da madrugada. Não encontraram nem os sapatos de Antônio nem sua história, nem suas roupas nem seus documentos, nem suas sinceras incertezas derramadas momentos antes nos ouvidos de Virgulinha, nem suas lágrimas cristalizadas na saudade dos filhos. Foi-se.

Alguém deu ideia de cavar a praça, quem sabe caiu num buraco? Veio a prefeitura, com suas máquinas de aço paquidérmico, mas sem formulários preenchidos. Eis o caminho da inutilidade porque, meu amigo, o que é o mundo sem formulário preenchido, não é mesmo? Serve pra nada. Então, nada de Antônio foi encontrado nesse segundo dia de intensa ausência operativa. Canseira nos olhos e garganta secando, algo de preguiça tomando conta da vontade, reclamando por ar fresco. Todos na cidade já estão um tanto enjoados pela dúvida, nem esburacar a pracinha resolvia o desaparecimento.

Veio correndo a Companhia Bananeira, interessada nos buracos da praça. Ofereceu à cidade ajuda em troca de braços e pernas nas suas plantations, obras e capatazia. Coletaram terra dos buracos, analisaram, enviaram à matriz da Europa, adicionaram uma tal de mesóclise e a tal de próclise nas amostras linguais e mentiram o que puderam. Mas na verdade o solo é infértil e insosso, lavado de miséria e indecente de tanta mediocridade. Foram embora e não pagaram os jagunços nem os come-bosta que ficaram esperando ordens que nunca vieram. Assim, nessa enigmática fantasia de cidade pequena realista, passaram outros outonos que nos trazem até agora, momento em que a fumaça ainda não devolveu Antônio.

Outro convenceu uma plateia ansiosa pela fé que a sua particular forma de oração seria o único antídoto contra o que não é da terra. Que Antônio só poderia ser alcançado pelo caminho da infinita confiança e que tudo tem um preço certo de sacrifício. Os cidadãos, então, perdidos num encantamento apaixonado e acorrentado pela fidelidade cega, deram, com máximo prazer, sua pouca e única abastança àquele que se dizia incorporar a Divindade de seus corações. E eles oraram, oraram e oraram o tempo inteiro. Mas passou mais uma estação, Antônio não apareceu e o pastor, quem sabe por conta do destino, continuou cada vez mais rico.

Então, finalmente, depois de enganados, embananados, defumados e pobres, resolveram culpar a fumaça. Isso também porque não tinham mais dinheiro nem paciência até para culpar devaneio. Que, ademais, nem tinha nada a ver com isso. Atravessaram o rio e falaram com os homens que queimavam o mundo, ainda que deles ficassem burros de tanto medo. As pernas não obedeciam e queriam fugir antes do tempo de pedir ajuda aos mascarados, tocha na mão, na beira da queimada. Apesar de quase travados de pavor, seguiram adiante e, com uma ousadia que não sabiam de que país vinha, perguntaram onde diabos podia estar nascendo tanta fumaça porque eles queriam ir até ela e espancá-la até a morte ou que a infame lhes entregasse Antônio. Assim foi que deles nunca mais se ouviu falar, que dizem também terem sumido na fumaça da estrada, que estava braba já com eles de tanto ouvir fofoca no acostamento da rodovia e também porque eram poucos e desunidos.

Sim, também não era a fumaça a culpada.

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