Miramarianas 2 | As Matinés de domingo
- rpegorini
- 18 de ago. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 20 de ago. de 2024

Todo idoso um dia já foi criança em preto e branco. Aceita essa premissa, para avançar na compreensão desse fenômeno compartilhado por toda uma geração, que foram as matinés de domingo, é preciso agora reconhecer a infância como um terreno mágico, incrustado numa zona de afetos abundantes, ingênuos, potentes e verdadeiros, repleta de curiosidades insaciáveis e infinitos planos de experimentação. Refiro-me, a seguir, a um intervalo de tempo pertencente à fase infantil — mas nem tanto — subindo a ladeira rumo à adolescência. A Psicanálise a rotula de Fase de Latência, termo um tanto enganador considerando a quantidade e intensidade de processos psíquicos explodindo secretamente a tranquilidade desse período. É nessa etapa da vida que se aprende a administrar parcerias – os grupos de amigos – e se desenvolve uma crescente sofisticação de certas estruturas mentais ainda livre das borbulhantes avalanches hormonais que virão em seguida. Aí iniciamos o processamento de concepções mais complexas do universo dos valores e das ideias e aciona-se, usando a tentativa e erro como mecanismo de operação, o que aprendemos nos primeiros anos dentro da família e que precisamos testar no mundo. Agora faço um zoom nessa época para acessar antigos fichários abarrotados de feitiço na minha nostalgia: as lembranças das matinés de domingo no cinema. Tenho certeza de que o leitor me concederá permissão para narrar esses eventos como se estivessem acontecendo no presente. É que o espírito do tempo nos visita com mais força quando o saudamos cara a cara. Segue.
No final da tarde de domingo, termina o segundo filme da matiné. A imensa cortina azul marinho movimenta-se lentamente e fecha a tela, encerrando a projeção das imagens no grande salão empanturrado de deslumbramento. Hora de acender as luzes da plateia e abrir as portas laterais que permitem a saída para a calçada. Centenas de espectadores deixam o interior do prédio, capaz de acomodar mil e quatrocentos assistentes sentados e milhões de personagens esvoaçantes na tela do cinema da minha infância. As pessoas, ainda um pouco cegas pela luminosidade intensa do exterior, caminham em direção às quatro saídas arrastando os pés, evitando tropeçar no restinho de escuro do salão até a rua. Nesse andar amorcegado, aturdido por pulsões mobilizadas, trocam comentários sobre as impressionantes cenas vistas há poucos minutos e gesticulam entusiasmadamente, querendo reproduzir a altivez ou a bravura de alguma circunstância impressionante do filme. Outros esperam sentados confortavelmente nas cadeiras, arrumando a bolsa, alinhando o casaco, fazendo tempo enquanto as filas, embretadas pela conformação das cadeiras, vão encolhendo lentamente. Vistos do mezanino, os movimentos vagarosos e sincronizados da multidão geram um balé tacitamente coordenado, movimentando-se do mundo da fantasia para a consciência da realidade. De certa forma, contrariados por ter de abandonar o sonhar acordado, mas, ao mesmo tempo, agradecidos pelo prazer de ter experienciado momentos mágicos em companhia de seus amigos e, junto com eles, ter conhecido heróis fantásticos e participado de aventuras extasiantes. Ah, as mentes das crianças, aquelas mesmas que mapeei no início deste texto, estão borbulhando, brilhando, faiscando energia, pulsando aceleradamente em eletrizantes enredos de superação e protagonizando peripécias nas pradarias do oeste bravio. Montadas em puro-sangues indígenas — pelagem avermelhada no tom da valentia —, guardando uma caravana que já se sabe: em breve será atacada pelos comanches. Na rua, impelidos pelo imaginário, correm e pulam atacando inimigos colossais, fantásticos personagens fugidos das telas, abatidos com os escandalosos mas artesanalmente contidos golpes de kung-fu recém aprendidos no filme.
Mas porque raios começo a contar as matinés de domingo pelo seu desfecho? A justificativa pode soar um tanto enigmática em vista da forma como estamos acostumados à fluidez alucinante das informações e eventos da sociedade contemporânea. Amigo, amiga: naquele tempo éramos obrigados a esperar a magia acontecer uma vez por semana somente. Por isso é que a paciente expectativa pela fantasia brotava já no final do domingo anterior, por isso comecei a história do capítulo dois pelo final do capítulo um. Seguia-se, a partir desse crepúsculo, a espera ansiosa pela próxima matiné, uma semana vivenciada em contagem regressiva, riscando os dias um a um, controlando as tentações intensas e indecentes pela estratégia maquiavélica de evitar o castigo extremo: perder a permissão materna para desfrutar da próxima sessão. Eis aqui, portanto, mais um exemplo de aprendizagem de valores e ideais: a demonstração de bom comportamento em prol do usufruto de algo prazeroso, um poderoso elemento de negociação na arte da educação pela teoria do reforço. Em mais um momento de charlatanismo psicologista meu, perdoe a licença nem tão poética assim.
Porque não se trata somente de assistir aos filmes. Trata-se de rever, uma vez em cada semana, os amigos que só o encontro no cinema proporciona; de sair da realidade e submergir em ambientes e peripécias indescritíveis para as palavras disponíveis no nosso ainda esquálido vocabulário; revirar a pilha de gibis velhos e levar para trocá-los, no intervalo dos filmes, por outros ainda não lidos; gastar o troquinho da poupança engordada com sacrifício (outra lição de valores) para saborear as balinhas de banana, as balas 7Belo, a coca-cola, quem sabe até conseguir o suficiente para uma caixinha de bonzinhos. E, quem sabe, ter mais sorte ou mais ousadia com aquela menininha de tranças que parecia devolver furtivamente o nosso desejo com a pontinha dos olhos. Será que ela estaria lá na próxima matiné? Assim escorriam avidamente os minutos, as horas, os dias, até completar a semana e chegar o momento mágico da matiné de domingo, idolatrado pela expectativa e pela paixão infantojuvenis.
As meninas mais velhas, lá do alto dos seus treze, quatorze anos, já são escaladas para levar os irmãos mais novos ao cinema. Elas já sabem o caminho, sabem se defender, já entendem relações comerciais e são plenamente capazes de administrar os trocados destinados aos ingressos e depois para as guloseimas do intervalo entre a primeira e a segunda sessão. Os rapazes, esses mais velhos e mais abastecidos das artes predatórias, vão em grupos de três ou quatro, e ficarão encostados nas paredes dos corredores, filme rolando, escuro protetor, criançada pequena devidamente aquartelada nos assentos e distraída com a ação do filme. As mocinhas, então, percorrem um roteiro de todo o domingo. Circulam no corredor, conversando baixinho, sussurrando futilidades, até que um rapaz mais hermoso atrai a atenção de uma delas, que sinaliza aqueles códigos que toda masculinidade compreende como permissivo. Acontece, gente, para usar um código compreensível para as novas gerações, um crush. O novo casal então escolhe um ninho perto dos maninhos, mas não à vista deles, onde permanecerão, licenciados pelo escurinho do cinema, unidos sentadinhos cada qual em sua poltrona para a prática de beijos e carícias, mas de mãozinhas dadas porque é preciso sempre impor respeito, como pediu papai. A gente tem que começar um dia, e o cinema de bairro foi o palco das primeiras incursões amorosas de muita gurizada recém saída das fraldas.
Termina o primeiro filme, os casais se recompõem, as meninas reúnem os pequenos, organizam quem guarda os assentos enquanto os outros correm como manadas para a bomboniere. Quem chega por último fica atrás da barreira dos primeiros a encostar a barriga no balcão. Esses serão atendidos no meio da gritaria, receberão seu troco e darão lugar à segunda barreira e assim a multidão vai sendo abastecida com as balas e refrigerantes num processo vagaroso, mas bem eficiente. Hora também de ir ao banheiro, entrar na fila e papear com os amiguinhos contorcendo-se enquanto o alívio não vem. Hora também de levar a pilha de revistinhas, entrar numa rodinha de trocas, olhar as capas que os outros vão mostrando, uma por uma: Pimentinha, Luluzinha, Bolota, Riquinho, Pato Donald, Mickey, Homem-aranha, Hulk, Batman, Fantasma... até escolher um gibi ainda não lido. Agora troca: é o outro quem escolhe. Vários grupinhos espalhados na imensa sala de espera do cinema repetem essas trocas de gibis, outros batem figurinhas, outros conversam gostosamente, outros simplesmente não se levantaram das cadeiras e permanecem esperando a próxima sessão. Cartazes e fotos dos filmes da semana que vem já estão devidamente expostos no salão, abrindo sensacionais perspectivas para a imaginação e a expectativa das crianças, dos adolescentes, dos adultos e dos idosos que as saboreiam demoradamente, cada faixa etária com as suas respectivas fantasias. Bate o gongo, passaram quinze minutos e é hora de voltar para mais duas horas de ilusão.
Agora já está quase acabando o segundo filme. Então, depois de praticamente desmantelada a defesa da caravana, flechas zunindo e fincando nos carroções enfileirados, última carga de munição, guerreiros comanches caindo já pertinho da defesa dos poucos caubóis ainda restantes ilesos nas trincheiras de sacos de areia, eis que ouve-se o toque do clarim. A mocinha levanta os olhos empolgada, em busca de um sinal no horizonte da chapada avermelhada. Corte para um batalhão de soldados cavalgando à toda em direção ao cerco. Ouve-se um pequeno terremoto no cinema: são as centenas de crianças e adolescentes batendo com força os dois pés no chão, simulando a cavalgada do 7º Regimento de Cavalaria do Coronel Custer. Sim, os míseros punhados de comanches batem em retirada e os mocinhos da caravana são todos salvos. É claro, sabemos hoje das patifarias de Custer e como foi um castigo merecido a sua derrota no Little Big Horn. Mas criança não sabia nada disso, nem os filmes contavam direito essa história, não é mesmo? Demorou muito para que a sétima arte relatasse essa história com um constrangido respeito. O que importava, na época, era ter uma matiné no domingo e ali fugir da obviedade da vida. Olha eu deixando os verbos no passado novamente para desviar a sua atenção.
Volto aos personagens do presente desses tempos. Agora é voltar para a vila, para o morro, para o barraco de sua viela e enfrentar novamente a indiferença, a falta de compaixão do mundo e a rua sem esgoto. Dura vida, vida dura. Mas espera. Hoje, que é domingo, levarei comigo, na esperança renovada pela epopeia e na alegria despertada pela comédia, um sopro da força mítica dos meus heróis, uma carga extra de coragem, algum exemplo de generosidade e de justiça simples e maniqueísta apreendidos nas quatro horas em que estive imerso em fantásticos ambientes estimulantes, compartilhados com os amigos do meu bairro e sonhados na vigília desse encantamento que é o universo cinematográfico. Basta a imaginação para colorir o futuro.
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