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Miramarianas 1 | O que perdemos mesmo?

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 4 de ago. de 2024
  • 6 min de leitura



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Para as gerações que só conhecem cinemas em shoppings, entendo que deve ser um pouco difícil imaginar como seria frequentar um cinema de bairro nos anos 1970. Naquela época – nossa, como me sinto velho falando desse jeito —, os cinemas eram prédios monumentais, imponentes, impactantes, engenhosamente projetados para acomodar inimagináveis multidões para as nossas percepções atuais. Chegava a se reunir, numa só sessão, mais de mil corações ávidos por momentos intensos, recheados com aventuras, romances, gargalhadas, ternura, tristeza e qualquer enternecimento emocional ilusório, obviamente e necessariamente deslumbrante.

Eu sei, isso ainda existe. Mas deixem-me explicar: perdeu-se, na névoa da modernice, a antiga escala populacional das salas gigantescas, completamente lotadas e pulsando no mesmo ritmo acelerado. Isso se via nas exibições de filmes bombasticamente populares, tais como as produções de Teixerinha, Os Trapalhões, Mazzaropi, Xuxa e outras celebridades popularescas. Esses eram os campeões de bilheteria daquele tempo, arrebatando multidões e produzindo filas que dobravam esquinas nas calçadas dos cinemas de bairro de Porto Alegre há cinquenta anos.

Abrigando a fabulosa ansiedade dessas plateias, salas de espera fantásticas, com espelhos fartos, cartazes e fotografias cinematográficas esbanjando glamour e devaneios pubescentes. Um premeditado clima romântico obviamente espetaculoso suspirado das paredes, dos tapetes, das cortinas vermelhas, do mobiliário vintage, perfumado com trilhas musicais que consagraram um estilo peculiar apelidado pela nossa geração de “música de sala de espera de cinema”. Para acomodar a emocionada paciência do aguardo pela abertura da sala de projeção, sofás sofisticados e modernosos cumpriam um confortável deleite ao alcance dos primeiros espectadores a invadir os recintos majestosos. Charmosas bomboniéres abriam uma perspectiva de guloseimas que atendia desde o namorado gentil — proporcionando-lhe mais uma oportunidade para melhor seduzir a convidada —, até a vovó solícita com os netinhos e o brigadiano de folga acarinhando a patroa, entre tantas vontades momentaneamente contidas nesse momento de expectativas.

Enfim, abrem-se as portas e o acesso ao interior do cinema é permitido. Nas matinés havia uma escandalosa correria para a conquista dos melhores lugares, mas vou deixar para abordar a nostalgia completa sobres as matinés de domingo em uma próxima crônica das Miramarianas. Basta descrever que, fosse qual fosse a sessão, o coração batia mais forte nesse instante, encantamento que nos foi surrupiado pela frieza da atualidade. Eis aqui outra diferença fundamental entre as épocas. Haverá muitas outras, como veremos a seguir.

É preciso alertar, também, que a luz da sala permanecia acesa até mesmo durante os trailers e propagandas iniciais e que, diferentemente de hoje, após o apagar dessas luzes havia um funcionário destinado a conduzir os espectadores retardatários até os assentos (não havia reserva de lugares) e ali os deixava devidamente acomodados. Eram os lanterninhas, verdadeiros anjos da escuridão que humanizavam um pouco a permanência nesse mágico espaço. Um bom lanterninha distinguia-se pela atenção obstinada e pela agilidade felina ao atender as pessoas que vinham acostumadas com a sala iluminada e entravam praticamente cegas nas trevas do grande salão. Em segundos, o faixo da lanterna era acionado e desenhava o caminho até as melhores cadeiras disponíveis. Hoje? Safe-se você mesmo e tropece até encontrar a letra e o número dos assentos reservados.

Toda essa atmosfera nostálgica era preparada para produzir um embevecimento que ia se apoderando dos espíritos dos casaizinhos e seus encontros faceiros no escurinho da felicidade. Quando a namorada declarava o seu desejo de ir ao cinema ao parceiro e escolhia a sala de projeção como palco para o joguinho esperto de ataque e defesa, com a previsível conquista consentida nas cadeiras bem juntinhas, tudo já estava premeditado. Embora ninguém precisasse combinar nada, o script era seguido fielmente, sem necessidade de decorar nenhum ato.  Afinal, improvisar é saborear a vida. De parte a parte, um delicioso pacto de sonhos e amassos comportados, ou nem tanto, rolava nos momentos mais apropriados entre as duas horas do filme.

Até que a cortina fechasse e se iniciasse o intervalo entre as sessões. Acho que é preciso informar outra peculiaridade das sessões noturnas em cinemas de bairro: de segunda a domingo, você pagava um ingresso e assistia a dois filmes diferentes. Começando o primeiro filme às 20h e o segundo às 22h, tendo um intervalo de 15 minutos entre os dois filmes. Então, havia um “armistício” sempre à vista pelos participantes dos encontros amorosos. O bom conquistador sabia sempre identificar as subsequentes etapas da narrativa geral de todo e qualquer filme dessa linha de produção, admiravelmente previsível no seu enredo: mocinho chega, se apaixona, leva uma tunda dos bandidos no meio do filme, volta, se vinga e fica com a mocinha. Vai embora rumo ao infinito emoldurado pelo pôr do sol, mocinha na garupa, montado no puro sangue que ganhou do camarada índio. Esse era o momento de se recompor e revirar os bolsos em busca dos trocados para as balinhas. Na segunda sessão, ora vejam, o enredo era exatamente igual, só que ambientado nos cenários de Hong Kong e falado em chinês. Então, o cronômetro interno da rapsódia amorosa voltava a se mover até a partida do mocinho de olhos puxados nos créditos finais. Os frequentadores das sessões noturnas desenvolviam um timing perfeitamente ajustado aos enredos dessas películas.

A programação classe B dos cinemas de bairro cumpria fielmente a preferência do público médio da região, combinando principalmente faroestes com “filmes de kung-fu”. É preciso mencionar que havia produção industrial desses gêneros pelo mundo: os spaguetti westerns, filmados com astros americanos, equipe e figuração italiana nos vales espanhóis da Múrcia, e os filmes de artes marciais, produzidos em série nos estúdios de Hong Kong, representando os mais populares gêneros dos cinemas de calçada (assim chamados atualmente). Então, não por acaso as salas de exibição dispunham de um cardápio que as suas plateias, de certa forma, eram “obrigadas” a consumir. No Brasil, para concorrer com essa demanda, a indústria cultural desovou milhares de filmes de pornochanchada (ingênuos se comparados com os padrões atuais) gravados no núcleo paulista e, mesmo assim, nesse ambiente saturado de produções rápidas e baratas, gerou inúmeras obras nacionais de grande qualidade como Dona Flor, Lúcio Flávio, Macunaíma, e tantas outras que atestam a pujança do cinema nacional da época. Na lógica da linha de distribuição, comandada pela associação portoalegrense de distribuidores de filmes, os cinemas do centro da cidade recebiam sempre em primeira mão os melhores e mais importantes filmes. Passadas várias semanas em exibição nos cinemas centrais, depois de passada a novidade e o filme gerando pouca bilheteria, era destinado aos cinemas de bairro. Assim aconteceu com Tubarão, Exorcista, Contatos Imediatos de 3º Grau, O Poderoso Chefão e todos os grandes lançamentos.

Os cinemas periféricos aglutinavam um turbilhão de desejos, mas nem todos eram interesses sadios e civilizados — é preciso registrar com um pouco de acanhamento, mas indispensável sinceridade. Nesse ambiente sombrio, próprio para as divagações de encantamento, infiltravam-se também as ações das deformidades humanas:  pilantras especializados em furtos, aliciadores de menores e aproveitadores da prostituição, entre tantos casos patológicos mentais, sorrateiramente presentes e clandestinos da vigilância moral. Sem dúvida, em qualquer ambiente haverá sempre quem se aproveite das suas características favoráveis para alimentar a sua doença. Infelizmente.

Nem só de encontros amorosos e perversões viviam os bolsos dos donos de cinema. Lembro também das turmas de estudantes matando aula, guardas e militares em noites de folga — às vezes com as patroas, às vezes com os filhos —, amigos, apaixonados pela sétima arte e outros tantos habitantes da noite que faziam do cinema um ambiente de encontro, de diversão ou de recolhimento. Tão longa poderia ser essa a tipologia de frequentadores quanto poderiam ser as personalidades de cada bairro, com seus comportamentos enigmáticos, suas trágicas e cômicas histórias pessoais, seus mistérios familiares, seus propósitos obscuros e seus pretensos códigos de honra. O cinema de bairro, como uma família, abrigava a todos, assim como embrulhava tantos e tão fascinantes sonhos. Posso aqui testemunhar a perda de um sentimento de cumplicidade fraternal entre assistentes dos cinemas de bairro que não existe hoje em dia nos cinemas de shopping. Naqueles ambientes, os frequentadores eram praticamente sempre os mesmos, reunindo-se casualmente conforme os horários de folga e interesses em determinados gêneros de filmes. Assim, com o passar dos anos formava-se uma irmandade, um comportamento social compartilhado desde a fila na calçada, passando pelo pipoqueiro da esquina, no olhar maravilhado com os cartazes e na excitação trocada nos bancos da sala de espera até a compra das balinhas e refrigerantes no intervalo dos filmes. Ali era possível conversar com moradores da sua rua, do seu quarteirão, do seu universo de interesses mundanos. Ali era possível saber, por exemplo, que o cachorrinho de Jacira havia fugido de casa. E agora tínhamos, em plena sala de espera do cinema, uma ampla patrulha de vizinhos preparando-se para ajudar Jacira a encontrar seu amiguinho de quatro patas. Que Manoel separara-se da mulher e agora precisava de uma nova companhia: a conversa girava então em torno da busca pela parceira ideal para Manoel; e muitos outros tipos de congraçamento público comunitário com as suas importantes pequenezas e suas fúteis grandezas. Em síntese: perdeu-se um local não só de divertimento, mas uma oportunidade de compartilhar humanidade, amor e companheirismo na periferia da cidade. Saudades desses espaços públicos de encantamento e diversão, nos quais os corações das pessoas alimentavam-se não só de sonhos, mas também de empatia e interesse pelos seus vizinhos e parceiros de bairro, suas virtudes e fraquezas cotidianas. Para quem conheceu esses tempos, essa é a grande perda.

 

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2 comentários

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Convidado:
19 de ago. de 2024
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Viagem no tempo, e como fenomenos impalpaveis como o senso de comunidade impregnava a geografia e as arquiteturas da cidade. Aqui, a sociabilidade se materiazilava num espaço de cultura popular - inexistente nos cinemas de shopping, onde cultura, espaço e comunidade são decantados uns dos outros. Uma belo texto, testemunho de um insider deste mundo recente, gone with the wind.

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rpegorini
rpegorini
20 de ago. de 2024
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Obrigado pelo carinhoso comentário!

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