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Lágrimas na chuva

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 20 de jun. de 2024
  • 2 min de leitura

Atualizado: 28 de jun. de 2024

O rosto do androide Roy na cena final do filme Blade Runner, olhando para Deckard, que não aparece na cena.

2019. Futuro. O palco é o terraço de um edifício eternamente encharcado pela chuva ácida. Roy puxa Deckard da morte para um último emocionante monólogo, tido como uma das cenas mais lindas de todos os tempos na arte do cinema. O androide matador salva e perdoa o humano que matou a sua “amada”. E a reflexão que uma máquina faz, capaz de sintetizar a verdade das verdades no seu derradeiro encanto diante da vida, é o núcleo filosófico que sustenta a grandiosidade de uma obra iniciada num livro de Philip K. Dick e que se expandiu para as telas do nosso pensamento.


Eu vi coisas que as pessoas não acreditariam. Naves de ataque ardendo em chamas nas fronteiras de Orion. Eu vi Raios-C cintilando na escuridão junto ao Portal de Tanhäuser. Todos esses momentos vão se perder no tempo ...


A Poesia... ah, a poesia entra em cena para nos ajudar a compreender a realidade de uma maneira menos dolorosa e menos desumana...


... como lágrimas na chuva.


E a brutal conformidade diante do inevitável.


... Tempo de morrer.


2024. Presente. Brasil. Rio Grande do Sul. Não deixe que os números o distraiam do assunto principal. O ano é posterior ao de Blade Runner, mas a miséria das pessoas que aqui sofrem sobrevive graças ao passado desprovido das aprendizagens que a história nos deixa. Milhões de metros cúbicos de água suja invadindo lares e empresas, assustando velhos, adultos e crianças, encurralando famílias, cachorros e cavalos nos telhados, entupindo as artérias de bairros e cidades inteiras, enlameando as articulações de máquinas e humanos, nocauteando a esperança recém reformada de um povo já suficientemente esmurrado pelas recentes tempestades. Dezenas de providências não tomadas agora assombram o futuro e a história de tanta gente.


Ainda hoje se pode encontrar testemunhas vivas de outra tragédia modelar, ocorrida em 1941. Mas para incontáveis famílias, a perda, além de material, é de foro íntimo: foram-se nessas águas enlameadas os elos com o passado. Não haverá fotografias de seus pais, de seus avós, de seus vizinhos, de seus amigos, de seus aniversários, de seus passeios, de suas viagens, de seus casamentos, de seus nascimentos, de seus funerais, de seus batizados, de suas conquistas, de suas tragédias, de seus amores, de seus noivos, de seus desafetos rasgados no retrato, de suas esposas grávidas e de seus filhos recém-nascidos, dos campeonatos de judô, das paisagens dos mirantes no morro, dos encontros na pizzaria, das formaturas da sobrinha, do filho e dos netos. Retratos, fotografias, registros, certidões, tudo foi levado e lavado até a completa dissolução. Acontece com esses pedacinhos de vidas como acontece nos recantos das memórias esquecidas, como acontece nos últimos suspiros de Roy. Como lágrimas na chuva.

 



 

 

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1 comentário

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02 de ago. de 2024
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

"All those moments will be lost in time like tears in the rain." ❤️ Adoro esse monólogo desde a adolescência, e foi um choque assistir ao filme na TV aberta anos depois com uma dublagem que destruiu essa cena. A frase inspirou até o título do livro "Lágrimas na chuva", do Sergio Faraco.

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