A Nau dos Loucos
- rpegorini
- 1 de set. de 2024
- 3 min de leitura
Para onde você vai quando embarca na sua loucura?

Da Idade Média nos chegam histórias lendárias sobre os loucos da cidade que eram reunidos e embarcados num navio sem tripulação e nele viajavam sem rumo pelos rios da Europa. Era um dos processos de purificação das cidades, “higienizando” as casas e as ruas, segregando esses personagens amedrontadores, provas vivas da presença de algo que não é possível nomear e, portanto, daquilo que é incontrolável. Uma vez embarcados, sumiam no horizonte, desfrutando ingenuamente de uma liberdade forçada a aceitar as rotas que as correntes do mundo a levasse. Para onde? Quem sabe em busca da razão.
Pensavam ter achado uma forma de resolver o inconveniente problema da convivência com comportamentos e ideias sem fundações na realidade convencionada entre os cidadãos. Enfiar os loucos nestas embarcações nada mais era do que se livrar do constrangimento de ter que conviver com a face ininteligível da humanidade, com seus devaneios, seus despropósitos e suas aflições de origem desconhecida. E assim evitar assistir o desfile das fraquezas humanas na sua essência mais insuportável.
Há um apego à dimensão épica nesse processo, revestindo a rejeição e a intolerância comunitárias com intenções nobres, higiênicas e justificadas, mascarando a exclusão, a limpeza das imperfeições humanas, como uma missão quase religiosa. Trezentos anos depois, em 1726, o escritor Jonathan Swift desenvolverá a sua própria incursão aos confins das estranhezas com As Viagens de Gulliver, aplicando a sátira como ferramenta para analisar os costumes e comportamentos ilógicos de povos de estranhas terras longínquas, mas absolutamente adequados e estruturados em seus respectivos estranhos e ilógicos países. A Odisseia é a narrativa da volta de Ulisses da Guerra de Troia, enfrentando, em cada terra visitada nos dez anos de infortúnios, as loucuras de cada lugar e seus monstros fabulosos, numa evidente metáfora da aventura humana na jornada da vida e aqui temos mais uma vez o apelo ao sentido épico da insanidade. Hitler também se valeria do mecanismo da exclusão, mas em termos dramaticamente mais trágicos, para aplicar a eugenia ariana. Quem sabe não estaria aí, nessa estranha loucura coletiva, também o motivo ou a origem de encontrarmos, em pleno Século XXI, pessoas orando para pneus, marchando entusiasmadamente em direção ao passado e pedindo ditadura em nome da liberdade?
A loucura, então, é uma convenção social? A loucura é um lugar ou um momento? A loucura é uma certeza inoportuna que fustiga as incertezas da nossa experiência nessa existência? Entre as diversas loucuras que habitam a mente, imperfeitas, impróprias, inconvenientes, intempestivas, incontroláveis, sempre haverá as indesejáveis, convidadas a se retirar da sua relação pessoal com a sociedade. Um embate entre o Id desgovernado e o Superego civilizatório? Das estranhezas que a loucura nos propõe, certamente se impõe a propriedade de não termos somente uma única loucura, um único desvio, um único padrão de desatino a habitar as profundezas da mente. Eu sei, porque já sou louco há bastante tempo, e, como todos sabem, a diabrura é espraiada e gera "diabrices" ao longo dos anos que passam voando. O Diabo é sábio não porque é diabo, mas porque é velho. Também podemos admitir momentos em que uma determinada loucura se impõe ante às demais, preponderando no período de desatino conforme a temperatura da vida naquele instante. As loucuras são nossos filhotes a crescer e multiplicar juntamente com a nossa idade, à espera da vinda da razão no final dos tempos.
Certo é que a nau dos loucos está a navegar permanentemente na circulação vital de cada ser humano, de cada momento, de cada território mundano demarcado na jornada dos indivíduos. Cabe a cada um descer ao porão de seu navio particular e lá buscar — se existir — o timoneiro mais adequado a cada situação, capaz de enfrentar as tempestades da vida e os disparates que ela nos apronta; conseguir equilibrar o convívio entre tantas loucuras embarcadas num único navio e lançar âncora na sua particular Insensatolândia e lá fundar as bases de sua Narragônia. Ilógica e irracional, autêntica e fantasiosa, imperfeita e imaginária. Mas real por ser a verdade de cada um, em busca de uma razão que desembarcou não se sabe onde. Temos toda a vida para encontrá-la. Mas só uma.
Um artista no trato com as palavras. Texto coeso e, mesmo tratando da loucura coletiva, é coerente. 😀😃
Abraço,
Andréa.
Ótima leitura de domingo, Ricardo, obrigado!
Abraço,
Leo