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A fortaleza de Weinsberg

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 14 de dez. de 2024
  • 6 min de leitura
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Os dois sentinelas do acampamento levantaram os fuzis e miraram no peito do visitante. O mensageiro enviado pela fortaleza sentiu as pernas derretendo sobre as botas antigamente pretas, agora couro cinza enrugado. Antes que desmoronasse, seguraram-no pelos braços finos, esqueléticos, contraindo os narizes porque alguma coisa os incomodava no fedor forasteiro daquelas axilas. Um cheiro terroso golpeou o olfato dos soldados, dominando o ar com um aroma penetrante e envolvente. O efeito colateral e momentaneamente incompreensível dessa repugnância foi disparar neles um extremo senso de nostalgia, vertendo, no sentimento dos soldados, pungentes lembranças das pontes de pedra e aquedutos arruinados da Francônia. Mais tarde haveriam de entender que naquela experiência os sentidos os traíam, dissimulando o odor intrínseco da melancolia, que os tinha encontrado pelos sovacos do inimigo.

Trouxeram-lhe uma caneca d’água. Como não conseguia nem levantar direito a cabeça pela fraqueza das poucas forças, despejaram sem delicadeza o líquido em sua nuca. Abriu os olhos e esfregou as mãos nas pernas, procurando certificar-se de que continuavam ali. A mente, regressando do refúgio da inconsciência, lutava ainda contra a aflição da insensatez geral, que havia evoluído nessa época para um estágio extremamente contagioso. Sentia que as tentativas de raciocínio emergiam intermitentemente na consciência, afogadas por lampejos de cenas de combate: cavaleiros despedaçados; flechas zunindo; vultos tropeçando agonizantes, derretendo em chamas; pedaços de braços, pernas, cabeças; troncos e famílias fragmentando-se na escuridão da violência do mundo e destroçando o que restava do seu juízo. Conseguiu interromper o escoamento desse pesadelo quando lembrou da importância da missão: centenas de vidas em estado máximo de angústia à espera de um milagre na fortaleza.

Os olhos esgazeados do fiapo de gente, estatelado na cadeira da tenda, desenterraram alguma piedade do peito dos dois sentinelas, que buscaram préstimo no oficial imediato em plantão. Enquanto os três discutiam a melhor forma de resolver as minudências do caso, o mensageiro começava a testar alguns movimentos, recuperando aos poucos o controle das pernas finas e trêmulas. Finalmente, o grupo decidiu levar o suplicante à presença do Rei, sem esquecer de revirá-lo numa desavergonhada revista. Atravessaram o perímetro de defesa pela manhã ainda alvorecendo no horizonte. Adquiriram uma escolta crescente a partir do início da área militar, margeando a zona das máquinas paradas por força do armistício temporário, durante os festejos de São Nicolau. Subiram a colina central já começando uma tarde chuvosa, seguindo a hierarquia das tendas de comando, até chegar nos alojamentos reais.

Quanto mais perto chegavam do Rei Konrath, o terceiro de sua estirpe, mais espantosamente crescia a multidão viva conduzindo o representante dos quase mortos. Relinchos teimosos vindos do estábulo real elevavam ainda mais a temperatura nervosa do ambiente, enchendo os corações das infantarias e dos cozinheiros de dúvidas órfãs e tecendo uma rede invisível de eletrizante mistério e sufocada animosidade. Quem lá estava naquele momento foi alcançado por uma histeria subcutânea, conduzida por rancores mal resolvidos e pelo desejo irracional de vingança entre conterrâneos fanatizados. Por pouco a intensidade crescente da voltagem emocional não levaria a situação a um transbordamento dos fluidos bárbaros, com o consequente desfecho em selvageria. Mas a indignação militar, ora vejam só, cumpre sua encenação só até o ponto de uma vulgar companheirada, obrigação velada entre parceiros de armas. Assim, caminhava o mensageiro entre maus olhares, zurros, urros e pensamentos patifes dos sitiantes numa trilha de estupidez. Espetáculo de zanga à parte, certo é que há de se dar efeito concreto à petição, escandalosamente desesperada nas suas pretensões, drasticamente decisiva quanto às consequências e insuportavelmente urgente para as almas cercadas na cidade sentenciada.

O mensageiro dos sobreviventes na fortaleza, finalmente, vê-se frente a frente com o Rei Konrath III. É o momento mais desesperadamente importante em toda a sua breve vida. Prostra-se aos pés do Rei tal como a cidadela encontra-se qualificada: à beira do portal da morte. Entre soluços de choro, derrama os lamentos da cidade e implora pelas vidas dos resistentes. Konrath considera-se fogoso e imbatível. Entre seus brutais hemisférios cerebrais desfila solitária a ideia de como esmagar mais facilmente cada um dos repugnantes Welfs encarcerados no cerco do desalento. Mas eis que também deseja demonstrar à sua nova pretendente uma faceta magnânima, borrifar naqueles lindos olhos castanho-claros uma declaração de carinho e civilidade, uma prova de que é capaz de esbanjar superioridade explícita até perante seres rastejantes e imundos. Também não pode se deixar de considerar que o momento de envolvimento com as liturgias de Natal seria uma péssima moldura para um massacre geral e completo, o seu fetiche original. Resolve conceder um mimo real e ministrar atenção àquela canalha, até mesmo para surpreender seus raivosos patriotas idólatras.

– Convoco perante esta Corte minha magnanimidade e, em nome da augusta Casa de Hohenstaufen, hei de atender à súplica desses miseráveis. Que este ato sirva para demonstrar a superior virtude e a moralidade inabalável de nossa linhagem.

Enfiou uma pausa no discurso e rosnou baixinho, para limpar a garganta e para aumentar a espetacularidade da sua indulgência. Continuou.

– Contudo, apenas as damas da cidade, as verdadeiras heroínas desta nefasta tragédia, merecerão o perdão real que agora concedo.

Finaliza numa ordem, que é a propriedade absoluta de um rei.

– Ide, mensageiro, e anunciai que somente às mulheres de Weinsberg será permitido abandonar os muros da cidade, levando consigo apenas aquilo que conseguirem carregar!

Mais uma pausa...

– E só!

Estendeu esses dois monossílabos o tempo suficiente para olhar de um lado a outro da multidão, hipnotizada pela solenidade da circunstância.

– Que se cumpra minha palavra, pois assim dita a clemência de minha coroa.

 

...

 

Agora o mensageiro tem mais um angustiante percurso a cumprir e um anúncio ainda mais doloroso, pois na fala pomposa do Rei ficou evidente a carnificina declarada: nenhum homem sobreviverá ao ódio faminto de sangue dos Hohenstaufen. Isso estava claro na malandragem implícita do anúncio real: a interrupção completa da dinastia Welfen. Então, ele perambula já sem vontade de chegar, vagando cabisbaixo pela antiga trilha da floresta negra, espantando com os longos braços finos os rasantes dos melros estressados pelo odor da morte nos recantos antigamente floridos do Heilbronn. As narinas do mensageiro já estão acostumadas aos vapores cadavéricos, pois tinham passado nesse mesmo lugar na viagem de ida até o acampamento dos sitiantes. Apesar do cenário surreal, ostentando montanhas de corpos desmembrados por todos os lados, colinas banhadas com sangue dos sacrifícios militares e revoadas de urubus planando sobre esse chocante panorama de cadáveres insepultos, o mensageiro mantém sua atenção concentrada nas palavras do Rei. Será pior, bem pior, se o monarca cumprir sua jura. Escondidos pelos troncos das árvores multisseculares, desencarnam fantasmas conhecidos do mensageiro, acompanhando-o na sua jornada e tentando absorver como esponjas espirituais a tristeza do andarilho, num último ato de amor antes da própria impermanência. A muda solidariedade fantasmagórica anula em parte o fracasso da lógica e libera um resto de intuição na mente do mensageiro. Uma ideia lhe vem à cabeça, capaz de transformar o predominante sentimento calamitoso numa partícula poderosa de esperança novamente.

...

No dia seguinte, 21 de dezembro, às portas do Natal do ano de 1140, o Rei Konrath III, liderando as grandiosas hostes militares germânicas, aperta o cerco à fortaleza de Weinsberg com regimentos de infantaria quase infinitos sob seu comando.  Dispostas as tropas ao redor dos muros, posiciona os arqueiros na frente dos portões parcialmente desmantelados do feudo, um obstáculo ridículo ante a potência dos aríetes e das catapultas. Konrath não precisa mais invadir os muros, os portões principais da cidadela não resistirão à primeira carga. Mas o Rei ainda aguarda um sinal antes de demolir as defesas terminais da cidade, sabe que os sitiados já viram as tropas chegando. “Certamente, empurrarão as mulheres para a salvação e morrerão lutando, como todo bom germânico, mesmo do tipo cachorro sarnento, deve proceder”... pensa o Rei enquanto cavalga para a entrada principal, à espera da saída das detentoras do salvo-conduto. Ombreado com o Rei, cavalga com ele todo o Conselho de Guerra, pronto para comandar as matanças logo após a saída das senhoras.

Os portões do castelo são abertos, despedaçando as enormes dobradiças brutalmente agredidas nos vinte dias de feroz cerco. Aquelas portas de carvalho da Schwarzwald, confeccionadas na guilda de Weinsberg, salvaram a vida de quase trezentas pessoas, mantendo-se bravamente em pé ante a insistente selvageria dos soldados reais. Pela abertura da fortaleza, uma fumaça escura e pestilenta retira-se carregando consigo os miasmas da dor e da disenteria e fugindo covardemente do ambiente inóspito e macabro que se tornou o feudo. Em seguida, inicia o desfile para o campo aberto, em fila indiana, dos andrajosos velhinhos de Weinsberg, arrastando-se com ajuda de paus e muletas. “Inofensivos e plenos de lamúrias, morrerão em seguida...” imagina o Rei.

Em seguida, vêm as mulheres. Mas espere! Há algo que elas levam consigo. Seguram, com os braços, as pernas de alguém agarrado às suas costas. Olhe bem, Rei Konrath III! Não apenas os filhos, carregam também os maridos, os guerreiros feridos, triturados, deformados, esmigalhados, humilhados, amassados, moídos pela verdade de sua fraqueza e pela desconsideração da providência, mas salvos  pelas mulheres, que os transportam nas costas e assim cumprem o édito real. O Rei acha tão propositadamente engenhosa essa saída desesperada que, enfim, resigna-se de bom grado ao desafio de se submeter à jurisdição de sua própria palavra empenhada. Aquelas mulheres carregam desde sempre não somente seus homens no colo, mas carregam também a coragem, a altivez, a lucidez e a genialidade que toda mulher é capaz de gerar. E deixam como herança para as gerações seguintes essa linda e destemida atitude de pleno amor. Uma bela mensagem, não é mesmo?

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