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A falta que faz uma cabeça

  • Foto do escritor: rpegorini
    rpegorini
  • 25 de ago. de 2024
  • 3 min de leitura

Quanto tempo sobrevive uma cabeça depois de separada do corpo?



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Para falar a verdade, nem dói. Ouve-se lá em cima o deslize acelerado da lâmina, raspando nas laterais da guilhotina, despencando no pescoço. Em seguida, o baque pesado na velha carcaça de madeira faz o mundo tremer. A cabeça voa no ar e avista, num instante extremamente fugaz, a multidão extasiada respirando fundo, as bocas escancarando-se num assombro silencioso. O tempo congela nesse instante. É aqui que a mente, ainda consciente, registra que está morrendo.

Acho que ainda consigo piscar os olhos. Também consigo mexer a língua encostando-a no céu da boca. Um sabor indefinido invade o que restou da garganta, algo misturado de água salobra e sangue. Ouço bem os sons à minha volta, embora não os decodifique com nitidez. Gritos, gargalhadas, algazarra, tossidas, gemidos, mugidos, latidos. Um rumor rosnado do mundo penetrando as trevas profundas emoldura o mundo sensível em volta do cadafalso. A eternidade aproxima-se acompanhada de uma tremenda confusão mental, pois não bastasse o alarido ensurdecedor do ambiente, as sinapses vindas dos pés e mãos ausentes continuam chegando. Até cólicas parecem ter voltado, depois de anos sumidas, mas tudo que consigo enxergar agora são os desenhos trançados dos feixes de palha no cesto de vime. Sinto que alguém me puxa lá de dentro pelos cabelos e chacoalha minha cabeça na frente da multidão gritando meu nome e meus supostos crimes, ressaltando várias vezes o crime de traição ao movimento revolucionário. É quando consigo distinguir cabeças conhecidas entre as pessoas da primeira fila. Minha família.


Resta resgatar, nesses últimos instantes de consciência, a razão de François Galimbert ter chegado ao derradeiro movimento de suas ações na terra, depositando — contrariadamente, é verdade —, a cabeça num cesto de vime sem a honrosa companhia do resto de seu corpo.

A fome.

Ah, a fome transforma as pessoas. Desmancha os laços que as conservam tolerantes; corrói as sutilezas que as fazem sentimentais, sofisticadas e hipócritas; extermina a indulgência e impulsiona a motivação para uma ação de extrema urgência defensiva. Lembro da fome que empurrou a população da aldeia à revolta como um aríete e lá estava eu, em companhia dos irmãos, empunhando a bandeira da minha paixão e da minha certeza naquele ideal. Invadimos a indiferença dos abastados, demolimos os muros da Bastilha e declaramos os direitos da humanidade em praça pública. Foram momentos de vitória esplendorosa, estupenda conquista da Assembleia e da alma libertária da população.

Mas as famílias e os amigos dividiram-se nas certezas, e o que era absoluto para uns tornou-se relativo para os outros. Convicções fundamentadas rebaixaram-se para paixões inquestionáveis; a fraternidade crítica converteu-se em partidarismo cego e obediente; e a possibilidade de um diálogo construtivo derreteu ante o monólogo imperturbável do fundamentalismo. Chegamos à Fase do Terror. O que separa as cabeças dos corpos, os irmãos da família e os amigos da amizade. Personifica a incapacidade de praticar empatia, alimenta-se do fracasso na tentativa de reconhecer o que nos falta pela voz do semelhante e a incompetência de produzir solidariamente algo que realmente enfrente o verdadeiro problema. Qual era mesmo o problema?

Ah, a Fome.

Aqui estou eu, sem a companhia de meus amigos e de meus irmãos, sem minha família, sem minha aldeia e sem a minha cabeça, que ficou lá dentro da cesta de vime.

E ainda tenho fome.

 





 

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