25 | The Other Side
- rpegorini
- 12 de ago.
- 10 min de leitura
Dia 25 - 21 de janeiro de 2008 – Paris > Londres
Às sete horas de uma manhã cinzenta de janeiro de 2008, um Taxi Parisien bordô parou na frente do número 3 da Rue Pierre Chausson, endereço do Little Hotel em Paris, com a missão de nos levar para a estação Gare du Nord. Malas e bolsas penduradas, tralharedos mil de viagem, libras separadas, passaportes no bolso e muito nervosismo tremelicando as mãos.
Explico.
Inúmeros relatos tenebrosos sobre a imigração inglesa tinham nos chegado por vários amigos e, entre eles, impactou muito um caso assustador sobre um integrante de excursão que foi barrado na entrada da Inglaterra e enviado de volta ao Brasil de forma humilhante. Já não lembro exatamente as circunstâncias, mas, resumindo para o que nos interessava naqueles momentos delicados: era aterradora a possibilidade de um casal jovem ser travado e perder todo o planejamento e investimento de uma viagem tão magnífica.
Você termina o check-out na emigração francesa e entra imediatamente na espera do check-in na imigração inglesa. Lá na frente, a cabine com o oficial atendendo parece uma coisa cada vez mais ameaçadora à medida que a fila vai diminuindo. A cada pessoa que sai da cabine, a palpitação aumenta, a ansiedade corrói mais uma parte do seu estômago e o suor escorre pelas mangas mesmo a 8 graus no inverno. O número de piscadas aumenta e a voz vai sumindo, como se você não quisesse incomodar o atendente com a sua insignificância. E a fila vai encolhendo, encolhendo, encolhendo, até que estamos nós, eu e Maria, a um passo da janelinha da cabine. A um passo da eternidade, a um passo do abismo. Agora não há mais desculpas, não há mais retorno, não adianta se arrepender, chegou a hora da verdade. Capriche no seu melhor inglês, Ricardo.
- Where are you from?
- We are from Brazil, from a southern state called Rio Grande do Sul, Porto Alegre City. (Será que falei bem, será que se fala assim ou caguei na gramática? Ai meu Deus!)
- Where are you going?
- We are going to London, to the Rushmore Hotel, in Earl’s Court (bah, tive que caprichar nessa pronúncia e até hoje não sei se falei certo).
Alguns segundos de silêncio dentro da cabine serviram para acender o sinal amarelo de emergência na cabeça dos brasiliani aqui. Mas o oficial prosseguiu:
– How many days will you stay in London?
- Five days, Sir! (Não sei de onde veio esse “Sir”, talvez do território mental incumbido do gerenciamento de situações de pânico).
Mais alguns segundos esmagadores. Valha-me, meu Santo Antônio!
- For Tourism?
- Yes. (melhor não enfeitar)
- Ok, you can go!
Saímos da cabine e fomos para o embarque. Pensamos: “Ufa! Dessa passamos, deve ter outra entrevista mais ‘inquisitorial’ quando chegarmos em Londres”. Às nove horas e sete minutos (atenção: não foi às nove horas e oito minutos, nem às nove horas e seis minutos) o TGT 9015, modelo que operava a linha Paris/Londres na época, ligou os motores em direção ao Eurotúnel. São duas horas e quinze minutos de viagem entre a estação Gare du Nord, de Paris, e a estação St. Pancras, em Londres, sendo 35 minutos em completa escuridão, atravessando cinquenta quilômetros por baixo do lendário Canal da Mancha a 320 km/h. Desculpe a quantidade absurda de números, talvez seja a ansiedade ainda transbordante desses momentos.
A curiosidade não deixa você relaxar, apesar do conforto do trem. E os trinta e cinco minutos de visibilidade zero nas janelas disparam as turbinas da imaginação como se estivéssemos a bordo de um filme da série “Premonição”. As paredes do túnel vão ruir, a água do mar vai invadir e esmagar todos do trem, aquela janela ali está meio trincada, a qualquer momento um guardinha vai entrar correndo avisando para usar alguma máscara milagrosa que nos permita respirar embaixo d’água e subir os 75 metros de oceano que nos separam da superfície atlântica. Tudo produção da mente, tudo fantasia, tudo medo infantil. Ao final da travessia, as portas do trem simplesmente abrem e os passageiros desembarcam tranquilamente, alguns mais apressados do que outros. Mas, olha bem, a pressa é para chegar mais cedo em casa, antes que o rush londrino, que é impressionante, se instale e tranque todas as ruas principais da cidade.
Caminhamos toda a estação esperando que alguém nos parasse e mandasse para alguma sala secreta, onde agentes brutamontes do MI6 esvaziariam todas as nossas malas e exigiriam explicações detalhadas sobre nossa vida pregressa e no final seríamos deportados de volta ao Brazil. Nada disso ocorreu e, apesar de andarmos em câmera lenta, para não parecermos demasiado arrogantes, houve um momento em que finalmente chegamos à saída da estação e nada, nada, nada aconteceu. Não posso deixar de confessar uma certa decepção: éramos insignificantes demais até para parecermos ameaçadores. Que desalento maravilhoso!
Saímos da estação como quem invade o cenário de um filme da Working Title Films, como quem espera encontrar a Bridget Jones em algum ponto da calçada telefonando para namorado. Estávamos em Londres! Esse ponto terráqueo, nas margens do rio Thames, ou Tâmisa, sempre foi invejado pela sua posição estratégica. Localizado no sudeste da Inglaterra, a cerca de 70 km do mar do Norte, perto da Europa continental e a uma distância navegável do oceano, possibilitou um comércio marítimo internacional pujante desde a Antiguidade.
Por isso, em 43 d.C. os onipresentes romanos fundaram ali a cidade de Londinium, que mais tarde atrairia a atenção e a cobiça de vikings (sempre eles) e anglo-saxões vindos da Germânia e da Dinamarca, convidados pelos líderes britânicos para ajudar contra invasões de outros povos. Estes acabariam traindo os locais e tomando suas terras logo após o declínio do império romano. Em 1066 é Guilherme, o tal conquistador, quem atravessa o Canal da Mancha vindo da Normandia, vence a batalha de Hastings e instala a Torre de Londres, testemunha silente de guerras, cercos, prisões e execuções, visitável até hoje. Esse cara mandou fazer o primeiro censo da história, chamado DomesDay Book, listando terras, posses e pessoas — um dos documentos administrativos mais importantes da Idade Média europeia. Veremos que Londres é o ninho de muitas pioneirices da história, mas nem tudo é ciência aqui. Há que se deixar envolver por essa atmosfera misteriosa e um tanto mística para se conseguir compreender um pouco do fog espiritual londrino.
Pois então: acabávamos de adentrar nessa zona fumacenta de dois mil anos, intrépidos cucarachas num reino culturalmente transcendente aos pequenos limites com os quais estávamos acostumados. E para iniciar a jornada, nada como uma descida aos labirintos do metrô mais antigo do mundo. A Metropolitan Railway, inaugurada em 1863, é a precursora do atual metrô de Londres (London Underground), também conhecido como "The Tube". Desde o processo de bilhetagem até o acompanhamento das paradas no interior dos vagões, cada usuário experimenta tecnologia ultra avançada e didaticamente explicada em cada estação e cada vagão do sistema. É fantástica a facilidade de se localizar e movimentar de um ponto a outro. E, de quebra, na estação do bairro em que tínhamos hotel reservado, operava um atendente da linha que orientava os passageiros em direção aos seus endereços após a saída do vagão. Uaaaauuuuuu!!!
Uniformizado como um porteiro de hotel de luxo, com ombreiras em franjas e boné de capitão, um senhor cinquentão, muito bem-educado e atencioso, auxiliava cada pessoa que chegava ao seu domínio, na porta de saída da estação, para o lugar onde queria ir. Na fila, encantados com o serviço de luxo do primeiro mundo, mal conseguíamos conter nossa babação com a providencial gentileza. Eis que toda fila um dia termina e acabou chegando a nossa vez:
- Welcome! Please, Where are you Going?
- Thank you! We are Going to Hotel Rushmore, eleven Trebovir Road.
- Where?? ... O “guardinha” não entendeu meu inglês. A gentileza foi grande, mas a comunicação não se fez presente. Tinha alguma coisa errada na pronúncia.
- Hotel Rushmore... Pronunciei o melhor que pude enquanto via as contorções faciais que o guardinha fazia para captar cada sílaba.
- Ahhhh!! Hotel RRRRRRRRRushmore.
Ele pronunciou aquele “R” como um radialista o faria. Daí entendi que o meu “R” havia sido pronunciado como um “H” (Hushmore). Coisas do processo de aprendizagem da pronúncia, a gente vai incorporando na vida real da jornada.
A respeito dessas situações, o inglês britânico prega suas peças nos viajantes incautos. Estávamos acostumados a nos virar tranquilamente, sem muitos percalços e sem muita frescura, em países de outros idiomas (Itália, Espanha, Áustria e França) porque neles os nativos também falam um inglês “colegial”, simples, direto e objetivo quanto ao sentido de utilização, que é eminentemente prático principalmente em situações de viagens. Isso nos ajudava no sentido de conseguirmos nos fazer ser entendidos e, em resposta, receber frases curtas e simplificadas. Mas em Londres, o habitante usa o idioma de uma maneira muito mais requintada, sofisticada e, às vezes, com uma ordem invertida, ou não direta, das orações, o que complica bastante o entendimento de quem não é fluente no idioma. Com o tempo e a prática, a conversação começa a fluir melhor e você leva menos tempo para decodificar as estranhas frases do cotidiano britânico.
Assim como o sentido do tráfego nas ruas. Todas as faixas são exaustivamente marcadas, pintadas em cada esquina, cada cruzamento, cada parada de ônibus, com sinais advertindo sobre a mão contrária para que a pessoa se dê conta de que os veículos transitam no sentido inverso. Cuidado responsável e sagazmente elaborado que, mesmo assim, não resguardaria o casalzinho aqui de pagar mais um mico no final da noite. Aguarde.
Estávamos no bairro Earl’s Court, que ganhou esse nome por estar numa região rural vinculada aos condes de Warwick, no século XVIII. Com a expansão do Metropolitan até as raias desses campos, houve uma grande aceleração na urbanização durante o período vitoriano e com ela surgiram muitas ruas ladeadas por casas geminadas de fachadas brancas e varandas de ferro, hoje convertidas em apartamentos, hotéis e hostels. Tal como o caso do Rushmore Hotel: um sobradão gêmeo de dezenas de outros sobrados brancos iguais em forma e espírito, podendo ser vendido tranquilamente como a residência de Agatha Christie sem maiores dores de consciência. Apreciar a fileira de sobrados todos iguaizinhos, um ao lado do outro, lembra muito outro filmezinho água com açúcar: Notting Hill. Será que Londres tem esse poder de despertar o lado piegas da nossa cinemateca “escondida”? A ver nos próximos capítulos... Aqui em Earl’s Court, em maio de 1975, o Led Zeppelin fez cinco shows lendários, durante a turnê do álbum Physical Graffiti. Foram apresentações marcantes porque o local tinha capacidade para cerca de 20 mil pessoas, algo enorme para a época, e o palco contava com um sistema de iluminação e som muito avançado. Só para não ficar somente nas referências cinematográficas. Ok?

Entrar no Rushmore foi como penetrar num filme antigo de Hitchcock colorizado com uma paleta de cores extremamente extravagante na sua cafonice insistentemente kitsch. Talvez querendo emular um clima “imperial”, a combinação era de vermelho “carne-viva” com o dourado monárquico. Cortinas, tapetes, franjas, encostos, guardanapos, carpetes, travesseiros, colchas, lençóis, até a nossa cama tinha dossel nesses tons cafonérrimos! Graças a Deus não tínhamos asma ou bronquite, quem sabe talvez terminássemos adquirindo algo desse tipo naquele ambiente simpático, mas um tanto insalubre. A atendente do hotel foi cordial e distante, profissional que não mistura atendimento com a intimidade de seus hóspedes – um pouco estranho para a nossa carência emocional latina, mas completamente compreensível dentro do contexto comportamental londrino. Ainda assim, os londrinos são bem mais simpático e atencioso que os parisienses, como qualquer viajante poderá lhe atestar.
Pois sobrara ainda uma parte do dia, o final da tarde: dava tempo para visitar o Museu de História Natural de Londres, que é gratuito – como quase todos os museus da capital inglesa. O Natural History Museum tem um dos mais importantes e visitados acervos do Reino Unido — trata-se de um ponto obrigatório para quem gosta de ciência, história e arquitetura. Suas origens remontam à coleção do British Museum (outro museu icônico), especialmente as peças reunidas por Sir Hans Sloane no século XVIII. Em 1881, ganhou sede própria em South Kensington, projetada pelo arquiteto Alfred Waterhouse, num estilo românico vitoriano impressionante.

O museu abriga cerca de 80 milhões de espécimes divididos em várias áreas: Paleontologia – fósseis, incluindo a famosa galeria de dinossauros. Mineralogia e Geologia – pedras preciosas, meteoritos e minerais raros. Zoologia – animais preservados, incluindo exemplares históricos coletados por exploradores. Botânica – coleções de plantas secas e registros botânicos. Entomologia – milhões de insetos catalogados. Logo no Hintze Hall, galeria servindo como salão central, fomos recebidos por “Dippy”, um esqueleto de Diplodocus medindo 27 metros de comprimento, um verdadeiro colosso anunciando a grandiosidade do acervo e sua qualidade científica.


Infelizmente, Dippy, ficou em exposição somente até 2017, hoje há um esqueleto de baleia azul em seu lugar. Entretanto, no momento em que o vimos naquela tarde quase noite de 21 de janeiro de 2008, a frase que martelou tanto o meu cérebro como o de Maria foi: “Ah, se o Caio estivesse aqui!”. E assim foi quase toda a visita, tão rico e tão impressionante o patrimônio reunido naquele museu que fazia aumentar, em cada peça exposta, a saudade do pequeno cientista apaixonado pelos grandes sauros do passado e, por conseguinte, também da filhota amada. Lembrados em cada aparelho interativo exposto, pois o museu propicia muitas áreas com experiências sensoriais e atividades para crianças. Percorrer aqueles fantásticos corredores foi deslumbrante e ao mesmo tempo um teste de resiliência de saudades e de sentimentos órfãos, enquanto assistíamos ao desenrolar da Terra aos nossos olhos e sentidos, apresentando os seres e resquícios de cada era geológica registrada e catalogada do nosso planeta.

Depois dessa extraordinária visita, que se estendeu até o horário da janta, chegamos ao momento de resgatar o “mico vermelhão-dourado” que eu havia prometido no décimo quarto parágrafo. Pegar um ônibus para voltar ao hotel. Chegamos na parada e aguardamos a chegada da District Line. Alguns minutos depois, chega outro casal. Estamos observando a direção da qual imaginamos que viria o ônibus, mas percebemos que o novo casal está olhando para o nosso lado. Ficamos um pouco incomodados, mas mantivemos a nossa fleugma, agora britânica e impassível como a de um guarda real de Buckingham. Mas o casal não desvia o olhar. Um, dois, três minutos e já estou com vontade de jogar a fleugma toda naquele par de seres inconvenientes. Que história é essa? O que temos de tão interessante assim? Viraram parisienses agora, é? Poxa!!! Vocês não vão cuidar o ônibus?? Ele vai chegar e vocês estarão olhando para o outro lado, só porque ficam nos encarando assim!
E antes que eu tivesse um ataque de latinidade e enfiasse a mão naquele casalzinho porquêra que não parava de nos olhar, o ônibus chegou.
Pelo outro lado.
Pelo lado que eles estavam olhando.
Esquecemos que Londres é sentido inverso, e estávamos cuidando a vinda do ônibus olhando para o lado errado. O casal estava certo. E nós, errados. Subimos no ônibus e fomos nos sentar bem longe do casal, vá que eles queiram tirar satisfações...
Eu, hein...
Algumas outras roubadas virão nos próximos dias, para atestar que a tupininquimzença é um estado de espírito e não nos larga facilmente. Aguarde.
Comentários