019 | O Touro do Hohensalzburg
- rpegorini
- 2 de mai.
- 8 min de leitura
Atualizado: 10 de mai.
Dia 19 - 15 de janeiro de 2008 – Áustria / Salzburg

No terceiro dia em Salzburg fomos visitar o Festung (fortaleza) Hohensalzburg, que fica no alto do monte Mönchsberg, ao lado do rio Salzach, como que a espreitar a cidade lá de cima dos seus 542 metros. Construído em 1077 pelo arcebispo Gebhard, foi ampliado e remodelado várias vezes no decorrer dos séculos com os recursos vindos das minas de sal e ouro da região. Nunca foi conquistado por nenhuma força invasora, servindo de fortaleza para arcebispos e príncipes de Salzburg contra os inimigos da cidade - até mesmo contra revoltas dos próprios habitantes - e é considerado uma das cidadelas mais bem preservadas da Europa Central. O arcebispo tinha uma deferência especial no castelo, era o único a ter uma privada particular. Para deixar bem claro: o dono da ÚNICA privada do castelo.

Para subir a montanha do castelo há duas maneiras: a pé (para quem tem tempo e disposição – não que não tivéssemos disposição, o que não tínhamos era tempo) ou indo pelo funicular (festungsbahn – “via para a fortaleza”, deduzo eu) no sopé do Mönchsberg. A subida é um barato. É um bondinho vertical que sobe bem rapidinho por um trilho. Nós fomos numa manhã fria e ensolarada, ainda com o gelo acumulado nas paredes e em algumas partes do chão do castelo. Nem nos arriscamos a chegar perto dessas partes geladas... não estávamos a fim de escorregar e levar um tombinho de 542 metros, certo ?

Chegando lá em cima, o encanto da vista arrebata até te roubar a fala, as montanhas ao fundo, a cidade estendida aos pés do castelo, o rio bruxuleando seus reflexos no horizonte, nuvens baixas, esmagadoras e envolventes... um espetáculo de imagens intensas da natureza! E que sorte tivemos naquele dia... o sol resolveu aparecer, depois de tantos dias nublados, e clareou toda a Salzburg até onde conseguíamos avistar das torres do castelo. Há uma visita guiada. Paga-se seis euros por pessoa e se recebe um audioguide (um dispositivo parecido com um MP3 Player com textos numerados e narrados em inglês descrevendo o ponto que se está visitando. Você chega num quarto e lá tem um número ao lado de uma cama, por exemplo, aperta este número no audioguide e ele dispara a gravação descrevendo tudo sobre a cama).


A primeira parte da visita leva até uma das torres do castelo, passando pelas câmaras de tortura, por quartos históricos, por maquetes do castelo contando as várias ampliações pelas quais o castelo passou etc etc. Chegando lá em cima, na torre, mais uma desbundada no visual, é ainda mais fantástico! Bem pertinho da fortaleza fica a catedral de Salzburg, a Dom, que teve sua abóbada destruída durante um bombardeio na II Guerra. Depois da visita guiada, embrenhamo-nos num labirinto de salas e salões no interior da fortificação principal do castelo, e nos deparamos com obras de arte medievais, armaduras, espadas, pistolas, esculturas, baús, bibliotecas e instalações artísticas. A mais interessante é uma montagem com inúmeros guerreiros estilizados, vestidos com armaduras e estruturados como numa cena de batalha, ao fundo, uma música ambiental aterrorizante, heheh... um barato!)... e assim você vai indo de uma sala para outra, curtindo os vários temas que ali estão expostos.


Uma coisa que me intrigava bastante nessa época era "o tamanho dessa gente do passado". Em várias cidades, castelos, palácios, havia exposta alguma cama dos personagens principais do lugar. Eu olhava aquelas camas e pensava..., mas essa gente era muito pequenininha, hein ? que caminhas pequenas... só faltava achar alguma tabuletinha escrito... “soneca”, “zangado”, “dunga”... Pois ora vejam: em uma viagem recente a Timbó, em Santa Catarina, um guia do Museu do Imigrante me explicou o motivo dessas caminhas tão curtas. É que os antigos dormiam sempre em decúbito dorsal, dobrando-se em posição fetal, a qual, segundo indicações da medicina moderna, é a melhor posição para o sono, ortopedicamente falando. E ora vejam também: depois dessa, a expressão “esticar as canelas” adquiriu um sentido mais esclarecido na minha biblioteca de aforismos.
Numa interessante seção sobre a participação dos combatentes austríacos na I Guerra Mundial é possível ver metralhadoras, fotos, histórias de heroísmo, estratégias militares, mapas, bandeiras, uniformes, tudo muito bem organizadinho. Houve épocas em que o soldado austríaco era um dos mais bem formados do mundo e muito do que o exército alemão aplicou em suas batalhas e guerras foi assimilado por essa grande proximidade e convivência com o império austro-húngaro e pela importação e estudo dos seus galantes conceitos guerreiros. Fredericos que o digam. Não é à toa que o nobre oficialato alemão de carreira foi o último grande adversário de Hitler, já numa atitude de desesperada sobrevivência, antes da perda definitiva da guerra ante o poderio militar soviético e os aliados.
Uma das histórias mais interessantes do castelo faz menção a um cerco que encurralou os administradores da cidade e a nobreza no castelo. Foi nos idos de 1525. Mineiros e camponeses se revoltaram contra o peso dos impostos. Algumas narrativas populares contam que foram os agricultores e mineiros que se revoltaram; outras, que foi um exército invasor... A concordância nas versões é de que os defensores ficaram encurralados dentro das paredes da fortaleza. A estratégia adotada pelos agressores foi provocar o desabastecimento do castelo, impedindo que alimentos chegassem até o pessoal encastelado no alto da montanha. Quatorze semanas se passaram e nada de comida chegou até as bocas esfaimadas das pessoas cercadas. Alguém teve uma brilhante ideia, digna de um cartoon do pica-pau ou do papa-léguas (mas eu sou veio, hein ? acho que só no Discovery Múmias rodam esses desenhos ainda...). Pegaram o último touro no estoque – sim, porque os outros já tinham ido para a panela – e passearam com ele num ponto do castelo onde os inimigos pudessem vê-lo desde suas posições lá embaixo, no campo da batalha. No outro dia, pegaram o mesmo touro, pintaram-no de preto e passearam com ele no mesmo ponto do castelo, para que os inimigos o vissem novamente. No outro dia, pintaram o pobre do touro novamente com outra cor e se foram a passear com ele naquele mesmo lugar. E assim foi indo, a cada dia, levavam o touro com uma cor diferente para mostrar aos inimigos entrincheirados lá embaixo. A estratégia deu certo. Os atacantes do castelo se convenceram que os sitiados ainda tinham grandes estoques de carne, porque todo dia apareciam com um touro diferente. E desistiram do cerco. Depois de muita comemoração, os sitiados tiveram uma última tarefa: lavar o touro, que estava com várias camadas de tinta sobre o couro. Aí desdobra-se mais uma ramificação da lenda. Levaram-no até o rio Salzach para lavá-lo. E reza a mitologia local que as águas do rio ficaram cheias de tinta até a cidade de Obendorf, vinte quilômetros abaixo. Dessa história nasceu a lenda dos “Lavadores de Touro” (die Salzburger Stierwascher), que foi a alcunha que deram aos salzburguenses na época e o apelido acabou pegando como chiclé em poltrona de cinema.

O principado religioso perdeu força no início do século XIX e Salzburg foi integrada à monarquia austríaca, quando então o Festung foi utilizado apenas como quartel militar até 1861. A partir daí, foi aberto à visitação pública e adotado o formato instalação-museu-histórico. Hoje em dia, é utilizado também como posto artístico-cultural. Há salas especiais no castelo para apresentações musicais, operísticas, teatrais, marionetes, etc. Inúmeros festivais culturais são promovidos ali e deve ser muito legal ir ver um show lá em cima, num castelo na montanha, tendo aquela cidade linda e os alpes tiroleses como cenário. A cidade de Salzburg realiza cerca de quatro mil concertos por ano, em um cálculo de dez por dia, sendo os festivais de música e oficinas conhecidos em todo o mundo e desejados por quem aprecia a boa música. De julho a agosto é realizado o mais importante festival de música erudita do planeta, rolando grandes concertos e óperas que mesmerizam a população da cidade nas praças, circundadas pelos casarios antigos e fontes com estátuas, e enfeitiçam os fiéis em igrejas, cafés e museus. Infelizmente fomos numa época que não tinha nada dessa natureza agendado. O Festung Hohensalzburg é o segundo ponto turístico mais visitado da Áustria, só perdendo para o castelo Schöbrunn, em Viena... e não é para menos. É realmente imperdível, tanto pela vista impressionante das montanhas e da cidade, como pela riqueza do patrimônio histórico preservado que é possível conhecer.


Descemos do castelo e fomos em direção à catedral. Caminhando na rua, ouvi um som estilo Paco de Lucia. Violão flamenco tocado com técnica virtuosística e tremendamente suingado. Embaixo das colunas da catedral, a surpresa: eram dois carinhas tocando violão e bandolim. Ao vivo!! Puxa vida! Impressionante a técnica dos caras! Pro meu azar, quando cheguei perto para filmá-los, terminaram a música. Mas imediatamente, ao ver que eu estava interessado, começaram outra... muito espertos, né? Como apreciador da boa música, larguei uns euros no chapeuzinho e filmei alguns compassos de uma valsinha que eles estavam tocando na hora. Mereciam mesmo!
Entramos na catedral, a Dom. Das igrejas que visitamos na Europa, certamente era a mais iluminada e isso correspondia plenamente ao espírito da população salzburguense: arejada, limpinha, branquinha, tudo restauradinho e bem cuidado. Você nem imagina que ela é uma das joias da arte barroca europeia porque a ideia de barroco que está na nossa mente brasileira é das igrejas mineiras, com aquele ar de antigo, empoeirado, malcuidado, meio bisonho, até meio assustador... Mesmo o conceito de “Roma Germânica”, com que nos apresentam os salzburguenses a sua cidade, causa um certo estranhamento porque Roma tem aquele ar de império decadente, em ruínas, o que certamente não combina com a limpeza e o capricho austríaco. Quando austríaco restaura, restaura pra valer. Vejam aquelas pirâmides de vidro que protegem as esculturas na frente da catedral. Não há nada que possibilite algum pichador manchar as estátuas, nem uma frestinha... E as três monumentais portas de bronze da catedral, cada uma significando alguma coisa que eu já esqueci, são realmente um bom motivo para sentar ali perto e ficar admirando aquelas obras de arte de Giacomo Manzu. Só as do Pantheon, de Roma, para rivalizar em beleza e grandiosidade. A Catedral de Salzburg, originalmente, foi construída por São Virgílio, em 774, local em que habitava um povo romano. Mas por duas vezes foi incendiada (1167 e 1598). A estrutura atual é de 1628 e passou a ser consagrada a São Rupert e São Virgílio, sendo em estilo barroco e considerado um dos tesouros da região. Nela está a pia batismal, onde uma criança chorona, de nome Wolfgang Amadeus Mozart, foi batizada.

Na Domplatz, um jogo de xadrez e uma esfera gigantes com um cara (estátua) em pé lá em cima, as charretes esperando fregueses, as montanhas ao fundo ornamentando a vista sensacional da cidade... tudo conspira para que você se encante cada vez mais com a cidade e com as pessoas que a habitam. Entramos numa padaria e compramos um lanche que seria o nosso almoço naquele dia. Olhamos para um banco num lugarzinho bem legal e nos sentamos para comer, sem nos dar conta que estávamos na sombra... Ao lado, um termógrafo. Olhamos as temperaturas registradas e vimos que de manhãzinha tinha chegado a uns cinco graus abaixo de zero, agora estava em cinco positivo. Sentamo-nos no banquinho e começamos a comer. Não tinha passado dez minutos e nossos dedos começaram a ficar congelados, mesmo COM LUVAS. Saltamos daquele banco e saímos caminhando e comendo e seguindo a canção...
Fomos parar no Residenz, que, como o nome diz (como é fácil de entender a língua alemã, não?), foi a residência oficial (em tempos de paz) do arcebispo (que acumulava as funções de bispo e de príncipe – Igreja e Poder Executivo) quando não estava encurralado no Hohensalzburg pintando touros. Entre os anos de 1600 e 1609, os príncipes-arcebispos realizavam suas festas no palácio dos arcebispos, perdendo essa condição com a chegada de Napoleão Bonaparte. Localizado no coração da cidade, tem suntuosas 180 salas e notáveis afrescos. Mozart também participou da história do Residenz, já que foi neste local que ele fez o seu primeiro concerto, com apenas 6 anos de idade. Atualmente o palácio é sede para recepções oficiais e reuniões internacionais. Você já deve ter visto aqueles filmes da época das valsas e vai lembrar das mulheres com seus vestidos bufantes rodopiando faceiras nos salões. Pois é. Olhe as fotos e imagine aquele salão entupido de gente dançando, bebendo, as carruagens esperando no pátio do palácio. Os “serviçais” esperando no frio e contando piadas entre si... Pois é. São cenas típicas de se imaginar no interior daquele salão. Salas enormes com enormes estufas, móveis do tempo do Luís XV, quadros imensos, tapeçarias, espelhos monumentais, sobreviventes de uma época de esplendor que só vemos em imagens de filmes da Sissi.

Voltamos ao hotel para preparar as malas para uma viagem de oito horas de Salzburg até a França no dia seguinte. Próxima parada: Paris.









































































A escrita impecável, o senso de humor e a abordagem criativa do autor merecem uma nota máxima na minha avaliação. Fui remetida ao passado e ao passado do passado como acompanhante do autor nessa viagem imagética incrivelmente rica. Parabéns Ricardo Pegorini!